UMA HISTÓRIA EVOLUTIVA (INCOMPLETA) DOS TRANSPORTES URBANOS

Por Fernando R. F. de Lima.
Imaginemos uma grande cidade nos anos 60 do século XIX. A paisagem é tomada por lama, cascos de cavalo e, principalmente, ferraduras soando contra calçamentos de granito, estrume, vapores diversos provenientes da queima de carvão vegetal e mineral e, eventualmente, o apito de trens que ao largo lançam fumaça ao ar. Alguns anos mais tarde, nos anos 70 ou 80, estes trens já seriam utilizados para o transporte interno de passageiros, e seria cada vez mais comum na cena urbana bondes puxados por cavalos ou mulas percorrendo trilhos pela cidade. Mas o barulho dos cascos contra o granito e do metal contra o metal ainda seria onipresente, bem como a presença da fumaça de carvão.
Deixando o século XIX de lado e pulando para o mundo do imediato pós-guerra, teremos um mundo bem diferente. Nas grandes cidades, a pobreza impera. Como devem saber todos, manter um cavalo é algo caro, cerca de R$ 1,5 mil por mês (conta que o ex-governador Requião não pagava, diga-se de passagem, para seus 80 cavalos, preferindo deixar nas mãos do contribuinte). Assim sendo, o transporte que levava as pessoas de um lado ao outro nas grandes cidades era, num primeiro momento, a bicicleta. Duas rodas cobertas por um pneu de borracha, sendo uma delas conectada a um par de pedais por meio de uma correia, num chassi de aço, dava a um trabalhador a capacidade de percorrer um terreno plano cerca de 4 vezes mais rápido que a pé com o mesmo esforço. Este veículo popularizou-se entre 1945 e 1955 por toda a Europa, tornando-se o meio diário de locomoção de milhões de pessoas.
O próximo passo foi a substituição das bicicletas pelas motocicletas. Não tanto pela velocidade, mas pelo comodismo. Troca-se a tração humana pela mecânica, onde um motor diminuto faz o esforço de conduzir o cidadão pelas distâncias. Nada muito mais caro que a bicicleta. De uma pequena moto, passa-se a outra, e a outra, de moto que o produto começa a ganhar em sofisticação, motorização, equipamentos. A década entre 1955 e 1965 é a década das motocicletas, sua era de ouro. Logo, contudo, outro produto começa a se popularizar.
Capaz de levar quatro ou cinco pessoas, contanto com proteção contra a chuva e neve, com menores riscos em caso de acidentes, o automóvel torna-se o próximo passo na vida de milhões de pessoas. A década entre 1965 e 1975 é a década do automóvel, que se massifica enormemente. Os carros ganham tamanho, conforto, economia, modernidade, simplicidade, facilidade de operação. Até que o automóvel torna o deslocamento entre a casa e o trabalho o caos. As próximas décadas, entre 1980 e 2000, são décadas em que há forte expansão do transporte público e o espetacular retorno à cena das bicicletas em algumas grandes cidades.
 
QUEM NASCE CURITIBA NUNCA CHEGA À AMSTERDAM.

O breve relato acima se aplica a diversos países. No Japão, na Itália, na Alemanha, na França, até mesmo na Argentina, as cidades conheceram um rápido desenvolvimento dos transportes coletivos, seguido por sua estagnação após a segunda guerra mundial, em que desenvolveram-se sucessivamente o ciclismo, motociclismo e automobilismo como forma de deslocamento em massa. A troca de um veículo por outro normalmente ocorreu em conjunto com a invenção de um ícone: no caso da Itália, a Vespa popularizou as motonetas. No Japão, a Honda Cub. Depois os carros. Pode-se dizer que o VW Sedan, Krafter ou Fusca, motorizou a Alemanha, junto com os primeiros DKW. Assim como o Citröen 2cv na França e o Fiat 500 na Itália. Na Inglaterra o Mini levou o carro às massas. No Japão, a Toyota lançou seu pequeno e revolucionário Corolla (Corona), e a Honda o Civic, além dos kei jidosha.
Nos EUA, como não houve pobreza no pós-guerra, mas o contrário, um surto de prosperidade que começou no esforço de guerra, as motocicletas nunca foram protagonistas. O automóvel ganhou destaque desde o início. Seu primeiro modelo popular, o Ford T, não teve similar moderno, porque a indústria americana passou a vender muitos carros, de forma diversificada. Mais que um meio de transporte, o automóvel era uma expressão da própria identidade ianque.
O Brasil, por outro lado, vive somente agora a popularização do automóvel como meio de transporte, algo que começou nos anos 1990. Antes, os automóveis eram ainda um luxo para poucos. As classes C, D e E contentavam-se, quando muito, com carros de terceira mão. Aqui também houve, por conta da intervenção estatal, algo interessante: as pessoas começaram se motorizando pelos automóveis, sem terem passado, na maioria das vezes, pelas bicicletas e motocicletas. Talvez seja isso que isso o que criado um motorista incompleto e arrogante. Mas divago.
Rua do Centro de Amsterdam: sem congestionamento.
(acervo próprio)
O fato é que São Paulo cresceu como uma cidade rica num país pobre, assim como praticamente todas as grandes capitais brasileiras. E cresceu com a visão elitista de que a passo final deveria ser o investimento para atender as demandas do automóvel. Contudo, São Paulo nunca teve a coragem de realizar estes investimentos, exceto de modo parcial e envergonhado. Tem-se assim, estruturas inacabadas, mal feitas, mal dimensionadas. Mesmo com poucos habitantes efetivamente motorizados, São Paulo já era a cidade do automóvel. Hoje, com pouco mais de 6 milhões de automóveis registrados, São Paulo ainda não é mais motorizada que Amsterdam, por exemplo. No entanto, é muito mais congestionada.
Não posso afirmar categoricamente, mas arriscaria dizer que é mais caro ter e manter um carro em São Paulo que na capital da Holanda, considerando os gastos mensais (prestação, depreciação, seguro, impostos, taxas, estacionamento, gasolina, e mais a distância percorrida), tanto em termos absolutos quanto em termos relativos. O holandês não usa bicicletas porque na Holanda há ciclofaixas ou ciclovias; ele usa bicicletas porque é mais conveniente. Segundo a lenda contada em Amsterdam, há 2 milhões de bicicletas naquela cidade que possui, segundo os locais, 500 mil habitantes. Uma das razões, além do evidente abandono de bicicletas antigas, é o fato de que os locais têm normalmente duas bicicletas, que ficam, cada uma, em uma das estações de transporte público.
Estacionamento de Bicicletas próximo a estação de trem
(acervo próprio)
Rodovia holandesa: passagens sempre em desnível, 
sem ciclistas, pedestres animais ou obstáculos na pista
(acervo próprio)
Além disso, anda-se de bicicleta em Amsterdam de modo civilizado, respeitando mão de tráfego e sinal de trânsito. Buzina-se para pedestres distraídos, ao invés de xingá-los, e utiliza-se até mesmo freio quando necessário (para o espanto dos nossos conterrâneos que desconhecem esta possibilidade numa bicicleta). Criatura exótica no trânsito da capital é o motorista de automóvel, que é raramente visto nas áreas centrais. Já nas periferias, onde as ruas são largas, há muitos carros. Muitos viadutos, pontes, túneis, trincheiras, rampas de acesso e muitas, muitas faixas nas rodovias, onde ciclistas não trafegam. Mesmo porque há estradas para ciclistas.
Outra rua central sem congestionamento
(acervo próprio)
Dia 29 de setembro, na Folha de S. Paulo, Pondé falou em seu texto que quem troca o carro por uma bicicleta é um privilegiado, porque ou não trabalha, ou mora perto do trabalho, ou ainda não tem que dar conta de manter uma casa com uma família de 5 pessoas. Pondé está certo. O que ocorre na Holanda, que permite a adesão maciça das pessoas ao ciclismo, é que várias pessoas possuem bicicleta para deslocamentos curtos. Desta forma, eu utilizaria minha bicicleta para me deslocar um ou dois quilômetros até a estação de trem ou metrô mais próxima, o que faria em menos de 10 minutos. De lá, me deslocaria rapidamente até a estação central, onde eu pegaria minha outra bicicleta e me deslocaria por mais 10 minutos até meu trabalho. A pé, eu levaria de duas a quatro vezes mais tempo, por isso a escolha pela bicicleta. De carro, eu pagaria mais caro e talvez levasse o mesmo tempo.
Onipresença das bicicletas em Amsterdam
(acervo próprio)
Sem congestionamento, barulho ou poluição.
(acervo próprio)
Esta opção, no entanto, está fechada para imensa maioria das pessoas no Brasil. Aqui, virtualmente inexiste esta possibilidade. Não há locais para a guarda de bicicletas. Os deslocamentos são inviáveis na maioria dos lugares. A opção pelo transporte público envolve, em 90% das vezes, ônibus, que são lentos. E muitas vezes o custo é maior. Vivo em Curitiba e havia uma época que eu me deslocava de moto, e o custo era menor que o de ônibus. Atualmente, sem considerar manutenção, depreciação, seguro e impostos, contando apenas combustível, meu custo com automóvel é menor que de ônibus. E eu gasto 40 minutos a menos de deslocamento.

Outros estacionamento de bicicletas
(acervo próprio)
Eu já declarei neste blog meu amor pelos automóveis, pelas motocicletas e pelas bicicletas. Gosto de todas as formas de locomoção. Já fui usuários frequente até mesmo do transporte coletivo. Se eu pudesse escolher, sem trade offs, escolheria deslocar-me diariamente de bicicleta. Contudo, sempre há um. No caso, é inviável para mim chegar todo suado ao trabalho, porque não tenho onde trocar de roupa. Tomar banho a caminho do serviço também cansativo e envolve uma logística complicada. No fim das contas, são 10 quilômetros diários em cada direção. Fizesse isso todo dia, iria até mesmo emagrecer. Diante disso declaro apenas: Curitiba nunca chegará a Amsterdã.

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