SOBRE COMPULSÃO E COERÇÃO

No liberalismo clássico, a idéia que se tem a respeito do Estado[i] é que ele é o aparelho social de compulsão e coerção, que deve deter o monopólio destas duas atitudes, para evitar um estado hobbesiano de natureza, ou a luta do mais forte contra o mais fraco simplesmente. O Estado, como detentor do monopólio da violência, como também é chamado, é visto como árbitro e guardião da vida, da propriedade e também da liberdade.

A experiência, contudo, deixou claro que cidadãos que não vigiam as ações do Estado acabam tornando-se vítimas deste "monopólio", e acabam servindo aos interesses imediatos dos detentores deste poder. A democracia, conforme apresentado superficialmente em outro texto, torna-se um sistema (até hoje o melhor, mas ainda assim imperfeito) de controle popular sobre o Estado.

Apresentado de forma breve esta compreensão inicial sobre o papel e o poder do Estado, passo a falar das outras formas de compulsão e coerção, como forma de mostrar que o monopólio da compulsão e coerção estatal é na verdade uma idéia parcial e incompleta sobre o verdadeiro papel e atuação do Estado na sociedade.

O ser humano, como já o definiu Ortega-y-Gasset, é um animal sociável, mas não social, no mesmo sentido que as formigas, por exemplo. Ao mesmo tempo em que não existimos longe do grupo, temos uma consciência muito presente de nossa individualidade e singularidade. E à medida que a civilização avança nos tornamos mais "sapiens" e menos "Homo (gêneos)"; tanto a consciência de individualidade e singularidade, quanto à dependência em relação aos grupos a que pertencemos crescem. Estas duas relações, ainda seguindo a trilha de Ortega-y-Gasset, são mediadas pelos usos e pelos costumes.

Uma questão fundamental para podemos compreender estas relações é que os usos e costumes são "mecanismos" (na falta de uma palavra melhor) de autocontrole desenvolvidos em sociedade. E quanto mais especializada a sociedade, mais dividido o trabalho e maiores os grupos de referência, mais demoramos a compreender e desenvolver estes mecanismos de autocontrole, ou seja, para adquirir e compreender os usos e os costumes.

Quando da formação dos primeiros estados nacionais e da discussão sobre os direitos do homem e do cidadão que serviram como base para a construção do discurso liberal, compreendia-se que em algum momento entre os 8 e 12 anos as crianças perdiam a "inocência" e tornavam-se adultos. À medida que o tempo foi passando, esta idade foi estendida, e hoje ela varia entre os 14 e os 18 anos. Isto não significa que esta idade de referência, que no Brasil é 18 anos, seja suficiente para a consolidação dos autocontroles nos indivíduos.

É sempre repetido, por liberais e mesmo por outros indivíduos, que a sociedade capitalista é uma sociedade baseada na confiança. As pessoas dedicam-se às suas atividades profissionais em troca de dinheiro porque confiam que poderão trocar estes pedaços de papel por comida (e outros bens) no mercado. E realizam uma etapa de seu trabalho porque de certa forma internalizaram que outros também realizaram aquelas etapas, que permitiram a vida de todos.

Quem imputa em nossas cabeças esta confiança e estas atitudes quase mecânicas são as outras pessoas, e é nesta discussão que se devem destacar as referências conceituais construídas por Norbert Elias, em a "Sociedade dos Indivíduos". Lá é possível ver que a contradição e os dilemas entre sociedade e indivíduo são, na verdade, um produto não intencional do tipo de relação estabelecido entre os indivíduos nas sociedades altamente complexas das sociedades urbano-industriais. E a própria complexidade de nossas sociedades não foi pensada nem planejada por qualquer um dos indivíduos solitariamente.

Nela, é possível observar que a consciência que tomamos de nossa individualidade, e o apego cada vez maior a esta noção, é dada pela crescente internalização de regras de autocontrole, que produzem, por exemplo, o desejo de privacidade (porque ensinam aos indivíduos comportamentos aceitáveis de serem realizados em público e outros que não são aceitáveis).

Este processo é complexo, e aqui podemos observar que há várias instituições que educam, coagem e compelem os indivíduos além do Estado, e por vários meios, inclusive mais eficazes que a violência física, o que limita de alguma forma o poder de compulsão e coerção do Estado. A família, entendida de forma ampla, é o meio primordial de compulsão e coerção dos indivíduos, principalmente quando crianças. Outras instituições, como as escolas, as igrejas e o mercado também atuam como disciplinadores. Por fim, os próprios indivíduos e as comunidades que eles formam são também responsáveis por outras formas de compulsão e coerção a determinados comportamentos. E é por causa destas instituições mediadoras que o poder do Estado é em algumas situações opressor e, em outras, libertador.

Muitas vezes, portanto, o Estado, ao limitar o poder de algumas destas outras instituições, como a família ou as igrejas ou o mercado, atua com o objetivo de libertar os indivíduos; em outras, quando sujeita os indivíduos às regras e preceitos destas instituições ou às suas próprias regras, limita a liberdade e compele a outro comportamento. Por isso, também, vivemos sempre na "corda bamba", digamos assim, porque um quase equilíbrio entre estes meios de poder, quando alterado, podem ter conseqüências imprevisíveis.

Assim, terminando este texto, podemos dizer que o tanto o Estado, quanto a família, as religiões e o mercado devem ser submetidos a medidas de controle mútuas, atuando no sentido de dispersar a concentração de poder, para favorecer os indivíduos. O monopólio estatal da compulsão e coerção pode ser visto também como um mito. Eu arriscaria dizer que o motor da individualização, e por extensão a origem da liberdade individual, é a competição existente entre estas diversas esferas de poder dos grupos sobre seus indivíduos. Estas idéias têm várias conseqüências que procurarei apresentar em outros textos, de forma mais ou menos continuada, depois de uma já há muito tempo prometida resenha do livro do Norbert Elias.



[i] Estado em letra maiúscula para me referir à instituição, uso já consagrado pela língua. Isto também facilita a distinção entre outros usos da palavra estado, como na frase a seguir. Aqui discordo, portanto, do uso desta palavra em minúsculo como já adota por alguns veículos de comunicação, porque a distinção mais ajuda que atrapalha na compreensão do que eu quero dizer. Espero, contudo, que não me veja com um estatólotra por causa disso.



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