DISCUTINDO HANS HERMANN HOPPE: PERIGOS DOGMATISMO LIBERAL

DISCUTINDO HANS HERMANN HOPPE: PERIGOS DOGMATISMO LIBERAL[i]

 

Por Fernando Raphael Ferro de Lima.

 

O autor, no capítulo 2 do livro "Uma Teoria sobre o Socialismo e o Capitalismo"[ii], se propõe a analisar os conceitos elementares ou naturais e que serão empregados para conhecer as diferenças entre o socialismo e o capitalismo. Ele parte do princípio de que todas as sociedades são, em alguma medida, socialistas e capitalistas, sob diversos aspectos. Apesar de liberal e simpático as idéias do autor, vou neste texto empreender uma crítica do capítulo 2 onde são desenvolvidas as definições de capitalismo, socialismo, agressão e propriedade, e apontar o problema para o campo onde as definições simples dos liberais tem levado têm permitido a vitória dos "socialistas": o campo dos costumes.

Na economia, atualmente há um consenso generalizado de que a propriedade privada e a competição são os melhores meios de se estimular a produtividade, e que, portanto, a manutenção da propriedade privada é o único meio eficiente de aumentar a quantidade de bens disponíveis no mundo escasso em que vivemos. O chamado socialismo europeu ou social-democracia tem para si bem internalizada a loucura que é destruir a propriedade privada como meio de chegar a uma solução de fartura: o caminho, nestas doutrinas sociais, é estimular a distribuição de renda. Do mesmo modo, o regime cubano tem seguido os passos do regime chinês no sentido de uma abertura econômica e de uma introdução da propriedade privada como meio de aumentar a produtividade e, conseqüentemente, a disponibilidade de bens de consumo para seus cidadãos[iii] (e sua elite dirigente).

Hoppe começa seu tratado pela definição de propriedade que é, segundo ele, o conceito a partir do qual se pode distinguir o capitalismo do socialismo, através da noção de agressão ou não-agressão à propriedade. Propriedade é definida por Hoppe a partir da constatação inevitável da escassez de bens, que é o que fundamenta a necessidade de um sistema de propriedade. E partindo a abstração bíblica da existência da abundância de todos os bens, o autor constata que a escassez fundamental é a nossa escassez de corpos. Ou seja, a propriedade fundamental do ser humano é seu próprio corpo, que o impede de usufruir de todos os prazeres ao mesmo tempo. Mesmo num mundo onde hipoteticamente não existisse escassez, o impedimento de usufruir todos os bens aos mesmo tempo traria a necessidade de um sistema de propriedade.

O rodeio da análise que farei agora pode parecer desviar do foco da argumentação de Hoppe, mas é o caminho necessário para se compreender a complexidade da idéia de posse ou propriedade do próprio corpo e os próprios conceitos de agressão que dele derivam.

Certo dia desses, eu respondi a um questionário que estava auto-intitulado como o menor teste político do mundo, onde pela resposta de algumas perguntas enquadravamo-nos como liberal, conservador, socialista ou social-democrata entre outras opções. Dentre as perguntas havia uma que questionava-me se eu era a favor ou contra a regulação estatal da conduta sexual dos indivíduos. Esta parece ser uma pergunta simples, e para mim, fácil de responder. A conduta sexual diz respeito ao uso que as pessoas fazem de seus corpos, que são sua propriedade primordial. Portanto minha resposta foi reafirmar que sou contra, afinal, não consideraria agradável ter o estado como regulador de minha conduta sexual.

Conversei sobre o resultado do teste com um amigo meu, e quando falei que era contra a regulação estatal da conduta sexual ele me trouxe como argumento a questão da pedofilia. Na mesma semana havia saído uma notícia no jornal sobre uma "seita[iv]" mórmon nos EUA que praticava a poligamia e também promovia o casamento de homens na faixa dos 40 anos com meninas (mulheres) de 12 anos. Aí ele me perguntou qual meu posicionamento sobre esta questão.

De fato, nesta ponto em específico, sou favorável a regulação estatal da conduta dos indivíduos, afinal, no meu modo de ver o mundo, uma menina de 12 anos ainda não é capaz de julgar adequadamente o que fazer com seu corpo. Este tipo de casamento podia ser comum no século XVI, mas hoje soa como uma aberração para nós enquanto sociedade. No caso dos pais concordarem com este matrimônio, creio que a ainda assim a proibição deste tipo de união deveria ser incentivada por lei, até uma idade em que o consenso público considerasse mais adequada (15 ou 16 anos pelo menos).

De certa forma, no caso da "seita" americana do exemplo, nem mesmo seus pais eram capazes de discernir sobre o assunto, afinal de contas uma das meninas casadas aos 12 anos era filho do pastor chefe de seita. Biologicamente, uma menina de 12 anos pode estar apta para ser mãe, por exemplo, o de fato ocorre em vários locais no Brasil. Mas uma vez aceito os 12 anos como idade limite, por que não dizer que talvez 10 já seja uma idade razoável, ou, daqui a 50 anos, 8 anos e, talvez, até menos? Afinal, o pressuposto básico é o consentimento. Mas como avaliar a capacidade de julgar de uma pessoa? O mesmo raciocínio pode ser estendido para a responsabilidade criminal. A partir de quando podemos responsabilizar criminalmente uma criança?

Aí vem a questão a qual Hoppe não aborda, mas que é fundamental em qualquer ordem social moderna: a partir de quando e até onde somos, de fato, proprietários dos nossos corpos? Se formos pensar, a questão se desdobra em muitas outras: até que idade os pais devem intervir sobre o uso que os filhos fazem de seus corpos? Até que idade os pais são responsáveis pelos filhos e têm o direito de intervir no seu comportamento? E até onde os pais podem decidir sobre o que fazer sobre seus filhos dependentes, sem que seja necessária a intervenção do estado?

Para iniciarmos a compreensão desta questão temos que voltar ao início dos pressupostos sobre a liberdade e a ação humana. Isto porque, ao contrário do exemplo hipotético de Hoppe, a vida social não começa no Eden, tampouco na idade adulta. Nossa vida começa quando nascemos, e, por conta da nossa herança genética, nascemos indefesos e completamente dependentes de nossos pais. Continuamos nesta situação de dependência até o momento em que somos capazes de nos virar sozinhos, e só nos damos conta de que este momento chegou muito tempo depois de nascidos. Do mesmo modo, quis a natureza (e a técnica o permitiu) que pudéssemos viver muito além da idade adulta, e muitas vezes até mais do que o tempo em que a velhice nos impede de agir por conta própria. A compreensão sobre as escolhas que fazemos e sobre a nossa ação no mundo, bem como as hierarquias e as escalas de valores não são definidas a priori.

Nós somos primeiramente propriedade de nossa mãe, na seqüência de nossa família, depois de nosso clã, aí de nossa tribo, depois de nossa nação, aí de nosso reino e somente quando chegamos ao estado-nação, e nos tornamos cidadãos, é que somos reconhecidos como indivíduos, e somente em alguns estados-nação podemos passar a abstração maior de que somos indivíduos donos e senhores absolutos de nossos corpos capazes de julgar se queremos viver ou morrer, sofrer ou sorrir ou assinar contratos livremente.

O fato de o homem ser um ser social o torna parte inseparável de qualquer tribo. Quando os liberais recorrem ao exemplo hipotético de um Robinson Crusué, se esquecem de que a existência daquele homem isolado só seria possível após ter passado toda a sua infância sendo tutelado por alguém mais velho. Sua existência depende, do nascimento até a morte, da existência do grupo ao qual pertence. Não existe homem separado da sociedade.

Aí entra a segunda complicação da explicação de Hoppe: o conceito de agressão. Ele compreende agressão como uma violação da propriedade, ou dos acordos sobre o uso da propriedade. Por exemplo, se alguém força o uso do meu corpo para outra ação que não aquela a que estou disposto a executar, este alguém usa de agressão para maximizar seu bem-estar em detrimento do meu. Mas quando eu obrigo minha filha a tomar banho estou fazendo isto para maximizar apenas o meu bem-estar ou estou, ao mesmo tempo maximizando também o bem-estar dela, apesar de fazê-lo contra a sua vontade momentânea? Quando eu privo meu filho de tomar vacina, eu estou exercendo meu direito soberano de pai ou estou ameaçando a maximização do bem estar das outras crianças que foram vacinadas?[v]

A teoria social liberal clássica, nos moldes definidos por Hoppe, mas que também são parte do raciocínio de outros autores são aplicáveis na solução de problemas morais restritos a adultos capazes. Toda a complexidade do fenômeno social, que abrange a infância, a velhice e a doença como partes comuns do cotidiano são difíceis de conciliar com a doutrina liberal. E diante desta impossibilidade, vários liberais do ponto de vista econômico refugiam-se nas tradições espirituais, sobretudo no cristianismo e no judaísmo, muitas vezes se utilizando de versões compiladas, como um judaísmo e cristianismo prototípicos atemporais que servem como referência para a solução de todos os problemas. Ou então, utilizam-se do pragmatismo, que do mesmo modo acaba por impor limitações à liberdade individual.

A vida, os corpos, a saúde e a cultura não podem ser tratáveis como propriedade sob todos os aspectos. Quando consideramos estas categorias como "bens" convencionais acabamos com os símbolos que carregam e nos perdemos no utilitarismo. Aí formulamos conceitos nos termos ideais, puros, platônicos como o de capitalismo e socialismo apresentados por Hans Hermann Hoppe. As avaliações derivadas que o autor faz dos conceitos de socialismo e capitalismo, como os impactos negativos sobre a utilização e o aperfeiçoamento do capital humano que se seguem de seus conceitos de propriedade e agressão não formam uma teoria social capaz de abordar a realidade. Não forma uma teoria social empírica, apesar da tentativa do autor. Sem uma teoria social empírica, toda discussão sobre os fundamentos da moral corre o risco de cair no vazio, ou no colo dos socialistas que se consideram herdeiros intelectuais de Marx, Weber e Durkheim.

Por isso, eu continuo achando que quem melhor definiu o problema humano no mundo foi José Ortega-y-Gasset em seu livro El Hombre y la Gente, apesar dele ser incompleto quanto a solução destas questões. Na sociologia, é com os trabalhos que surgem a partir de Durkheim que poderemos compreender como a sociedade se forma, e as forças que atuam sobre os indivíduos, inclusive na formação do conceito de indivíduo, que nos é tão caro, porque pressuposto para o conceito de liberdade.

A abordagem do problema da formação do estado é solucionada apenas pelo movimento dialético entre repressão/civilização e liberação/individualização. E o paradoxo disto tudo é que, quando mais individual se torna o indivíduo mais poderoso o estado tem que se tornar, para dar conta de controlar e regular a liberdade destes mesmos indivíduos. É o caso típico do quanto mais livre menos livre.

A história recente da civilização é a troca da opressão do clã da tribo e da igreja pela opressão do Estado, o que só não foi percebido porque o próprio conceito de opressão tal como o compreendemos surge apenas após o estado-nação. Tanto nas sociedade que ao longo do século XX passaram pela transformação capitalista quanto aquelas que aderiram ao socialismo tornaram-se sociedades ao mesmo tempo mais livre e menos livros. Em ambos os casos a opressão estatal progrediu sobre as esferas familiares, tribais e religiosas, substituindo-as. Trocamos um tirano local por outro mais poderoso e impessoal: eis o resultado prático das políticas modernas. A grande diferença é que sob o arranjo democrático esta transição foi um pouco menos tortuosa, ao menos para aqueles que estavam dispostos a faze-la, o que não foi o caso dos povos não-russos da URSS e dos nativos americanos no caso dos EUA.

No primeiro caso, a russificação/sovietização foi acompanhada de um intenso processo de engenharia social muito traumático e sangrento por conta do grau de civilização dos povos subjugados. As escaramuças recentes no Cáucaso não deixam de ser um resultado indireto deste processo mal concluído. Já no caso americano, a menos densidade demográfica e a inferioridade técnica dos nativos americanos proporcionou uma solução mais rápida (o virtual extermínio da "proto"-civilização ameríndia local).

Há solução para estes problemas? O rumo da civilização é inevitavelmente este. A individualização das pessoas leva fatalmente a dissolução dos grupos menores. Ao mesmo tempo, as antigas formas "tribais" de controle passam a ser substituídas por formas estatais de controle, que acabam levando o estado para dentro dos lares, através da regulação da conduta sexual/reprodutiva, educacional, sanitária, produtiva, etc. Porque não podemos mais prescindir da civilização não podemos prescindir da interferência estatal no foro íntimo, privado, doméstico. Somos e seremos cada vez menos livres sob alguns aspectos, porém mais livres sob outros.

A questão é o convencimento de que a liberdade que teremos será melhor que aquela que temos agora. A harmonia é um conceito platônico que não existe em sociedade e tampouco existirá. A "natureza" humana é necessariamente conflituosa (pecaminosa como diriam os crentes) e a mediação destes conflitos passa necessariamente pela aumento da interferência jurídica na vida privada. A resposta para a solução dos conflitos modernos não é nem o liberalismo puro nem o socialismo: a resposta é a democracia, o melhor do pior dos mundos: nosso mundo.

 



[i] Gostaria de agradecer a Anselmo Heidrich pelos comentários ao texto preliminar.

[ii] Este livro foi traduzido do inglês pelo meu amigo Klauber Cristofen Pires, ativista liberal de Belém no Pará, responsável pelo blog Libertatum, e articulista de vários sites, entre eles o Ratio Pro Libertas.

[iii] As mudanças de rumo em políticas econômicas são comuns mesmo em países "capitalistas". Conferir o artigo de Rodrigo Constantino sobre a Nova Zelândia

[iv] Seita compreendida como um agrupamento religioso onde a participação no grupo ocorre de forma voluntária.

[v] Neste ponto entra também a questão muito bem lembrada por Anselmo Heidrich de que a pode ser necessária uma agressão prévia para me defender de outra agressão, algo como uma guerra preventiva. Creio que a limitação do direito de dirigir alcoolizado se enquadra nesta definição de guerra preventiva.



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