UMA NOVA REGIONALIZAÇÃO DO MUNDO


Por Fernando R. F. de Lima.

Ao longo do século XX, as formas de classificar os grupos de países mudaram rapidamente em funções dos eventos políticos e econômicos ocorridos, como guerras, alianças militares e o próprio fenômeno do imperialismo. No caso específico da Europa, a divisão entre Aliados e Entente, que marcou a primeira guerra mundial, mudou para a disputa entre os Aliados e os países do Eixo na segunda grande guerra. Após o fim da guerra o equilíbrio de poder foi novamente alterado e os países acabaram divididos em dois grandes grupos, o dos países capitalistas, capitaneados pelos EUA e o dos países socialistas, liderados pela URSS.
Nos anos 1950 e 1960 várias foram as divisões propostas para melhor compreender o mundo. Entre os economistas a divisão entre os países do Sul e os países do Norte, estes ricos e industrializados, aqueles pobres e exportadores de produtos primários serviram, de certa forma, como inspiração para a divisão entre os países centrais e periféricos, que suscitou inclusive os debates sobre questões do desenvolvimento. Ainda nos anos 1960, a emergência de alguns novos atores importantes no cenário global, em decorrência da industrialização dos países “periféricos” ou do sul, levou ao surgimento de uma alcunha que ficou internacionalmente famosa, os países do terceiro mundo.
Este “terceiro mundo”, que a princípio poderia ser compreendido como uma terceira via (tendo em vista as opções capitalismo liberal e socialismo centralmente planejado), congregava países tão díspares quanto Indonésia, Zaire, Egito e Brasil, países com características sócio-econômicas, culturais, religiosas e também em estágios de desenvolvimento muito diferentes entre si. Contudo, o conceito de terceiro mundo, logo associada à pobreza e ao subdesenvolvimento, tornou-se mais forte que a classificação a que pertencia. Mesmo com o fim da URSS e da dicotomia entre “leste e oeste”, a noção persistiu e continuou a servir para englobar aqueles países que não eram desenvolvidos, ou seja, que ainda não desfrutavam de todos os benefícios advindos da modernização ocidental.
Ademais, com o avanço da globalização, sobretudo da globalização financeira e dos mercados de títulos globais, com a presença de investimentos internacionais realizados não apenas por empresas ou por governos, mas também por fundos de pensão de trabalhadores, a classificação dos países em grupos deixou de ser apenas um exercício acadêmico, ou ainda parte da retórica diplomática e da cartografia militar, para se tornar um instrumento de gestão de fundos de investimento. Desde então, as classificações de países tornaram-se cada vez mais dinâmicas.
Antoine van Agtmael foi o criador da expressão “países emergentes”, como forma de superar o termo “terceiro mundo”, que segundo ele estava carregado de ideologia e preconceito. Outras expressões como “países em desenvolvimento” surgiram para dar conta das diferenças existentes entre os países pobres estagnados e aqueles que apresentavam melhorias significativas nos indicadores sociais e econômicos. Desde então nos habituamos a ler nos jornais siglas de grupos como G7, G20, NIC`s etc. Para diferenciar alguns países dentro deste grupo heterogêno de países “em desenvolvimento, o economista Jim O`Neill, do banco Goldman Sachs, propôs a sigla BRIC*, o grupo das quatro grandes economias formado por Brasil, Rússia, Índia e China.
O`Neill chamava a atenção para estes quatro países entre os demais “países emergentes”, por conta do peso de suas economias. Afinal, Brasil, Rússia, China e Índia são os quatro países “emergentes” cujo PIB ultrapassava a cifra de US$ 1 trilhão. Com a crise de 2008, que atingiu com mais força os países ricos, EUA, Japão e a União Européia, e com menor intensidade as “economias emergentes”, com destaque para a China e a Índia e em menor grau o Brasil e a Rússia, ficou evidente que a economia mundial, e principalmente a destes países parecia não estar mais tão atrelada como se supunha ao desempenho econômico do G7 e em particular dos EUA.
Recentemente, Jim O`Neill propôs uma nova classificação para englobar junto ao BRIC algumas outras econômicas representativas em termos mundiais, e classificá-las sob a alcunha “economias de crescimento”. Neste grupo, além dos quatro acima mencionados, estão incluídos México, Coréia do Sul (que tem 1,6% do PIB mundial cada um), Turquia (1,2%) e Indonésia (1,1%). Estas economias de crescimento diferem dos demais emergentes pelo fato de já serem grandes economias, ou seja, já alcançam parcelas significativas do PIB mundial, além de apresentarem grandes mercados que, diferente dos países ricos, apresentam ainda potencial de crescimento.
O grupo abrange os mesmos países que, em estudo realizado pela PriceWaterhouseCoopers (PWC), são apontados como E7 (Emerging 7 ou os sete emergentes), em alusão ao G7. Segundo as previsões dos analistas da PWC, a China ultrapassará os EUA como maior economia mundial ainda em 2018, quando considerados os valores do PIB ajustados pelo poder comparativo de compra (PCC), e em 2032, se os valores forem ajustados ao valor do mercado do câmbio. O Brasil, segundo o critério PCC, ultrapassará a Inglaterra ainda em 2013, e a Índia o Japão neste ano de 2011.
Com isso, pode-se afirmar que não se trata apenas de uma nova forma de classificar os países em grupos, mas sim o resultado de uma real mudança no “centro de gravidade” da economia mundial. Estes países, com taxas de crescimento econômico e demográfico mais aceleradas que a dos países desenvolvidos, serão cada vez mais importantes nas tomadas de decisão na economia mundial, ao mesmo tempo que assumirão mais responsabilidades nos processos de negociação, como é o caso da questão climática, por exemplo. Nas negociações sobre tarifas, também não se pode desprezar o papel da mudança, já que em vários aspectos as indústrias européias e japonesas se encontram numa situação muitas vezes mais frágil que a de países como a China e a Coréia do Sul, e no agronegócio, os interesses dos produtores brasileiros certamente estão mais próximos dos americanos que dos indianos.
Esta nova regionalização do mundo demandará mudanças nas estratégias de inserção e posicionamento da economia nacional no comércio mundial em franco processo de mutação. A própria discussão recente sobre a flutuação ou não do câmbio nestas economias dá uma mostra da necessidade da mudança no modo como é tratada a política externa brasileira, abandonando de vez a retórica terceiro mundista em favor de uma visão mais pragmática de como se deve encarar o papel destas grandes economias no cenário atual.
Para o Brasil, esta mudança se observa em relação a seus principais parceiros comerciais, com um crescimento constante entre os principais mercados dos quais o país importa e exporta. A partir da análise dos dados do comércio exterior brasileiro ao longo da última década, percebe-se o peso desta mudança na composição dos parceiros comerciais do país. Enquanto em 2000 os países do chamado E7, (China, Rússia, Índia, Coréia do Sul, México Turquia e Indonésia) aumentaram sua participação no comércio com o Brasil de 8% em 2000 para 25% em 2010, os países do G7 (EUA, Japão, Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Canadá) viram sua participação reduzida de 46% em 2000 para 29% em 2010.
Os valores totais da corrente de comércio brasileira (importações somadas com as exportações) cresceram, ao longo do período 2000-2010 a uma taxa de 13,2% ao ano, quantia muito superior ao crescimento do PIB no mesmo período. Entre os países do E7 o crescimento foi de 26,5% ao ano, com destaque para a China, cujas transações aumentaram 37,7% ao ano. Já entre os países do G7, o crescimento foi muito mais discreto (8,2% ao ano), mas ainda superior ao crescimento do PIB. Em relação aos outros países, que incluem os parceiros comerciais do MERCOSUL, a taxa ficou apenas ligeiramente superior ao crescimento do total, com 13,3% ao ano (Tabela 1).


É possível observar também que, enquanto o saldo comercial brasileiro foi positivo na relação com os países do E7, esta relação foi deficitária com os países do G7. Em 2000, o comércio internacional brasileiro registrou um déficit de pouco mais de US$ 731 milhões. Já em 2010, foi superavitário em US$ 20.266 milhões. A análise permite verificar que o superávit brasileiro foi formado principalmente pelo comércio com os países do E7 e também com outros países, uma vez que foi fortemente deficitário na relação com o G7 (Tabela 2).



         Nota-se, porém, que o saldo comercial positivo do país com o E7 é explicado, sobretudo, pelas relações comerciais com a China e a Rússia, sendo que a pauta é composta principalmente de commodities agrominerais (no primeiro caso) e carnes (no segundo). Com o G7 o déficit é explicado pela importação de produtos industrializados, sendo que as exportações também são fortemente dominadas por produtos primários dos complexos agrominerais. Deste modo, apesar da redução da dependência brasileira em relação aos seus tradicionais compradores, o que representa uma evolução em termos comerciais, há, no balanço das transações, uma reorientação da pauta para produtos menos elaborados.
             Especialistas apontam ainda para fato de que além da primarização da pauta externa, tem havido uma perda de mercados de produtos industriais brasileiros entre nossos tradicionais compradores, os países da América Latina, causada, principalmente, pelo avanço da China. Ademais, estes países têm utilizado seu novo parceiro comercial como instrumento de barganha nas negociações com o Brasil, o que é notório sobretudo em relação à Argentina.
            Assim, além da mudança na dinâmica externa do país, o Brasil, com o crescimento de seu status internacional, toma também para si o desafio de administrar e cooperar com sua “periferia”, ou seja, sua zona de influência direta ou tradicional, na qual encontram-se novos competidores, sobretudo seus pares do E7. É possível, portanto, concluir que estamos num novo processo de regionalização do mundo, em que se tornam mais complexas as relações internacionais, tanto para analistas, quanto para diplomatas. Estas mudanças exigiram, por certo, uma nova doutrina de comércio exterior, que oriente as tomadas de decisão do país num mundo global cheio de incertezas.


NOTA: * De acordo com o Ministério das Relações Exteriores "A idéia dos BRICS foi formulada pelo economista-chefe da Goldman Sachs, Jim O´Neil, em estudo de 2001, intitulado “Building Better Global Economic BRICs”. Fixou-se como categoria da análise nos meios econômico-financeiros, empresariais, acadêmicos e de comunicação. Em 2006, o conceito deu origem a um agrupamento, propriamente dito, incorporado à política externa de Brasil, Rússia, Índia e China. Em 2011, por ocasião da III Cúpula, a África do Sul passou a fazer parte do agrupamento, que adotou a sigla BRICS"
Acesso dia 29/03/2012 em: http://www.itamaraty.gov.br/temas/mecanismos-inter-regionais/agrupamento-brics


Comentários

INTERCEPTOR disse…
Fernando,

Texto excelente. Raras são as vezes em que um texto é bom por ser, ao mesmo tempo, didático e profundo. Este será um dos que usarei para afiar minha maneira de entender a estruturação de forças econômicas mundiais. Isto é geografia econômica de verdade e não o monte de baboseira ideológica que vemos por aí. Parabéns!

Ah, sim, a sigla original não é BRICS, i.e., Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul?

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