POLÍTICAS PÚBLICAS DE TRANSPORTE PARA O TRABALHADOR


Na já longínqua década de 1970, foi criada uma lei para favorecer o trabalhador oprimido pelo desenvolvimento do capitalismo selvagem. Eram tempos de um Brasil socialista, ou quase, um Brasil terceira via, que negava o capitalismo liberal americano e nutria algumas simpatias pelo modelo centralizado de planejamento da União Soviética. O Brasil, apesar de viver o milagre econômico, já bem próximo do fim, obtinha o crescimento econômico por meio de empresas estatais criada com dinheiro tomado no exterior a juros baixos, mercado fechado a importações (desde 1978 quase que completamente fechado) e muito controle da economia por parte do governo.
Dentro deste espírito, surgiram as bases de uma “social-democracia” dos trópicos. Já havia o INPS, que garantia a saúde do trabalhador e sua família (trabalhador com carteira assinada), havia o FGTS, que lhe garantia uma poupança forçada, já que o trabalhador não era capaz de poupar por si mesmo, e outros tantos benefícios públicos. Uma das iniciativas tardias dentro do regime militar, foi a criação da lei do Vale Transporte, que surgiu primeiramente em algumas cidades e em 1979 ganhou algum corpo jurídico para o nível nacional. Em 1985 o presidente José Sarney, quando o Brasil estava há alguns passos de entrar de vez na era Soviética, com controles de preço e leis que virtualmente limitavam a propriedade imobiliária urbana, reformas agrárias se anunciando no horizonte e outras coisas mais, a lei do vale transporte tornou-se nacional.
Com a inflação galopante, o preço dos combustíveis nas alturas, muitos corriam o risco de não poderem trabalhar por não poder pagar pelo custo do transporte até o trabalho. Assim, a lei do vale-transporte surgia como uma “solução” para este problema (como se existissem almoços grátis), limitando a despesa do trabalhador com transporte a apenas 6% de seu salário, com o restante do dinheiro sendo bancado pelo opressor e safado empregador.
Não vou entrar na discussão de quantos empregos devem ter sido eliminados com esta medida e, sobretudo, quantos empregos deixaram de existir a partir de sua implantação. O fato é que o grande sub-produto desta lei foi a criação de um grande mercado “invisível” de vale-transporte, que nos grandes centros urbanos levou algumas pessoas a ganhar muito dinheiro, e deu um grande estímulo à economia informal. A lei do vale-transporte, como todas as boas intenções que habitam o inferno, tinha um objetivo aparentemente bom. Como o desconto máximo do salário do trabalhador seria de 6%, ele limitava os gastos com transporte para permitir gastos com outras coisas, como comida, principalmente, e bens de consumo duráveis e não duráveis.
Em tempos de crise, era uma espécie de incentivo keynesiano para aquecer o mercado, pago pelos empregadores, obviamente. Como a lei ainda está em vigor, vou tentar mostrar porque formou-se um mercado informal do vale-transporte, com todas as suas conseqüências. A lei se aplica a todos os trabalhadores que ganham até 3 salários mínimos. Atualmente, o salário mínimo está em R$465,00. Por esta lógica, o trabalhador só pode dispor de 6% de seu salário para pagamento de vale transporte. Num mês normal, temos cerca de 25 dias de trabalho. Tomando por base duas viagens por dia (ida e volta), o trabalhador pagaria em média por 50 viagens. Atualmente a passagem custa R$ 2,20 em Curitiba, o que significa R$ 110,00 por mês. Isto representa 23% de um salário mínimo, 12% de dois salários mínimos, 8% de três salários mínimos e 6% de quatro salários mínimos.
O trabalhador, contudo, pagaria apenas R$ 27,90, R$ 55,80, R$ 83,70 e R$ 111,60, para salários variando de 1 a 4 salários mínimos. Brevemente, podemos ver que no primeiro caso as 50 passagens custariam R$ 82,10, R$ 54,20, R$ 26,30 a menos do que valem, e no último caso, sairiam mais caro que seu valor para comprar diretamente. Com isto, os trabalhadores que ganham de 1 a 3 salários mínimos teriam um real benefício em usar o vale transporte, enquanto os que ganham mais de 4 salários mínimos teriam um prejuízo em adotar esta política de transporte.
No entanto, a lei permite em um brecha para o trabalhador conseguir mais que 50 passagens por mês; é que nem todos os sistemas de transporte são integrados, como é o caso de Curitiba (mas mesmo aqui é possível conseguir mais vales-transporte). Assim, o trabalhador pode declarar que ele pega quatro ônibus por dia, em alguns casos até seis ônibus por dia. Isto quer dizer que ele pode “levantar” R$ 220,00 em passagem gastando apenas R$ 27,90. Obviamente, muita gente poderá lucrar muito com isto. Surgem, quase que naturalmente, os compradores e revendedores de vale-transporte. Cria-se uma nova moeda nos centros urbanos, uma moeda podre, que só vale a face para a empresa de ônibus e para o empregador que paga o subsídio do trabalhador.
Creio que todos os que moram em cidades com sistemas de transporte coletivo conhecem histórias de pessoas que ficaram relativamente ricas com o negócio do vale-transporte. Um trabalhador desempregado, daqueles que perderam o emprego porque a empresa não poderia bancar seu salário e mais os seus vales transportes pelo tanto que ele produzia, resolve usar seu FGTS para comprar vale-transporte dos trabalhadores que conseguiram manter seus empregos. Se ele comprar os vales-transportes por R$1,50, ele terá R$ 0,60 centavos de margem. Obviamente, ninguém compraria um vale transporte para pagar a passagem se ele custasse o mesmo que a passagem. Portanto, ele revende o vale transporte por R$ 0,20 centavos a menos, ou seja ao invés de R$ 2,20, por R$ 2,00. Se ele conseguir vender 100 vales por dia, ele terá um lucro líquido de vinte reais por dia ( 20x25 = R$ 500,00) ou seja, mais que um salário mínimo. Ficando próximo a um terminal de ônibus ele pode vender, com relativa facilidade, cerca de 1000 vales por dia, com um lucro de R$ 200,00 por dia, ou seja, R$ 5000,00 por mês (mais de 10 salários mínimos). Em vários terminais de ônibus de Curitiba circulam diariamente mais de 100 mil pessoas.
Esta política de transporte é muito custosa para todos. Para as empresas, porque pesa-lhes pagar mais de 20% do salário mínimo de auxílio transporte (às vezes o total pode ultrapassar 40% do salário mínimo). Para a prefeitura, porque muitas pessoas pagaram muito menos pelo transporte do que o valor de face, encarecendo os custos. Também pesa para o povo como um todo, porque mercado tão lucrativo quanto este atrai criminalidade.
Há outros custos também: um deles é o custo de implantação de sistemas de ônibus integrados, ou seja, esquemas de tarifa única, para reduzir os custos de transporte para os empregadores, trabalhadores autônomos e trabalhadores do mercado informal. No meio de toda esta máquina, certamente, entram custos com corrupção. E além de tudo isto, ainda há os inúmeros subsídios, como diesel sem imposto para os ônibus, linhas de crédito para financiamento de renovação de frota, a criação de todo o sistema de controle do serviço, que implica vários funcionários pagos para esta tarefa acessória e, por fim, uma qualidade decrescente do transporte coletivo, pelo excesso de usuários em algumas linhas e falta de usuários em outras (que resulta em intervalos muito longos).
Aquele que conseguiu me aguentar até aqui pode perguntar: e o que isto tem haver com o mês da bicicleta? A resposta é meio tortuosa, mas a bicicleta aparece em dois momentos em toda esta encrenca. Ou melhor, ela desaparece numa ponta e reaparece noutra. A ponta em que ela desaparece, é aquela em deveria estar, ou seja, o início da formulação da política pública de transporte. A ponta em que ela reaparece, é como um importante meio de deslocamento dentro das cidades brasileiras, mesmo sem contar com infra-estrutura para isto. Curitiba tem 1500km de vias públicas, mas não conta com nenhum km de ciclovia utilitária, ou seja, aquela destinada para a ida e volta do trabalho ou escola. No entanto, milhares de ciclistas rodam (muitas vezes irregularmente) pelas vias da cidade todos os dias, ciclistas que vendem seus vale-transportes (agora aluga-se o cartão transporte com o sistema de bilhetagem eletrônica) para completar a renda de seus baixos salários.
Nos próximos textos vou aprofundar um pouco mais esta questão, apesar de focar mais numa mais aberta sobre as possibilidades do ciclismo em grandes centros urbanos.

Abaixo vão alguns links:
Lei do Vale Transporte

Cartão Transporte em Curitiba (site oficial)

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