Morte e Vida de Grandes Cidades - Jane Jacobs

RESENHA - MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES: CRÍTICA AO PLANEJAMENTO URBANO MODERNISTA E ALGO MAIS.

por Fernando R.

 

"Existem hoje muitas pessoas que desejam o bem de seus países e acreditam que a coisa mais útil que elas e seus vizinhos poderiam fazer para consertar a situação seria poupar mais do que costumam... Em determinadas circunstâncias, isso estaria perfeitamente certo, mas nas circunstâncias que vivemos é um erro. Suponham que todos nós deixássemos de gastar nossas rendas e decidíssemos poupá-las por inteiro.

O resultado é que todo mundo perderia o emprego. E não demoraria para que não restasse renda a gastar... Agora é hora de os governos locais se ocuparem de toda espécie de melhora sensata... Li alguns dias atrás sobre uma proposta para construir uma nova via, um bulevar largo, paralelo ao Strand, do lado sul do rio Tâmisa, unindo Westminster à City... Mas eu gostaria de fazer algo ainda maior. Por exemplo, por que não derrubar todo o sul de Londres, de Westminster a Greenwich, e caprichar no trabalho? Ao mesmo tempo, forneceríamos centenas de hectares de praças e avenidas, parques e espaços públicos... Seria melhor ver as pessoas ociosas e miseráveis, vivendo de salário-desemprego?" (De uma palestra de rádio proferida por John Maynard Keynes em 14 de janeiro de 1931, publicada em "Essays in Persuasion".)

 

 

A primeira vista pode-se perguntar o que uma epígrafe de John Maynard Keynes estaria fazendo na introdução de uma resenha sobre o livro de Jane Jacobs "Morte e vida de grandes cidade". A resposta a esta questão é simples: o planejamento urbano que matava as cidades americanas, na visão de Jacobs é o mesmo proposto por Keynes.

Acredito que o livro de Jane Jacobs não teria para mim o mesmo sentido se eu não tivesse o conhecimento que tenho sobre economia, que apesar de pequeno, é mais ou menos abrangente sobre a história da disciplina. Tampouco teria o mesmo aproveitamento caso não fosse estudante do tema desenvolvimento urbano e regional, e se não tivesse uma forte aversão ao planejamento municipal nos moldes que se tem desenvolvido.

Meu grande sonho profissional é poder, um dia, sintetizar na forma de um livro uma correlação entre o liberalismo e o planejamento urbano, de forma a casar um com o outro. O que me falta, e tenho procurado contruir é uma teoria urbana capaz de dar conta desta relação. Jane Jacobs não fornece esta teoria de modo completo, mas dá aulas e mais aulas sobre o que é a base fundamental de uma vida urbana saudável: a diversidade. Esta, de certa forma, é a mesma receita de uma economia saudável, e de uma alimentação saudável, etc. Mas é na diversidade que encontraremos a resposta para muitos dos problemas criados pela mentalidade (para usarmos um chavão e ao mesmo tempo um conceito) fordista que se implantou em nosso meio.

Esta resenha sobre o livro será comprida, porque o livro é ele próprio muito comprido. E há vários temas que cabe explorar separadamente, e várias percepções sobre a realidade que ocultam diversas premissas. Como já comentei com amigos, a esquerda universitária, tanto americana como brasileira, tem feito uma leitura muito porca da obra de Jane Jacobs. E os preceitos desenvolvidos no urbanismo, dentro da escola conhecido por New Urbanism, acabam descambando para uma ideologia de controle social que inviabiliza a própria aplicação do princípio da diversidade sobre o meio urbano.

Creio que a grande lição do livro é a de que o mundo precisa de políticas liberais, que as cidades necessitam destas políticas e as pessoas também, apesar de não dizer isto diretamente no livro. Porque a autora parte de um princípio fundamental que é idéia de que as pessoas são capazes de identificar os próprios interesses e lutar por eles. De certa forma, isto é mais uma esperança e um axioma que uma verdade ou um consenso. É a base da constituição americana, que diz que cada cidadão deve ser livre para buscar a felicidade, isto é, para perseguir os próprios interesses. A idéia de que todos são iguais perante a lei também norteia o princípio fundador da diversidade, porque igualdade significa, na maior parte das vezes, convivência e proximidade, e este é o combustível do dinamismo econômico, social e cultural das cidades.

Na página 302, quando Jacobs fala do problema dos cortiços, ela coloca o pressuposto que baseia suas políticas, e que pode ser diretamente relacionado com a sugestão de Keynes que compõem esta epígrafe:

"O planejamento urbano convencional trata os cortiços e seus habitantes de forma inteiramente paternalista. O problema dos paternalistas é que eles querem empreender mudanças muito profundas e optam por meios superficiais e ineficazes. Para solucionar o problema dos cortiços, precisamos encarar seus habitantes como pessoas capazes de compreender seus interesses pessoais e lidar com eles, o que certamente são." (JACOBS, 2001, 302)

 

Jacobs adota o princípio de que a cidade é uma obra coletiva que pertence às pessoas, não ao poder público, prefeitura ou, de modo mais genérico, ao Estado. Por isso, as cidades devem ser pensadas a partir do ponto de vista das relações sociais nelas desenvolvidas, e esta premissa é especialmente verdadeira para as grandes cidades. Jacobs critica o que chama de planejamento urbano ortodoxo no começo do livro, que abrange, de certa forma, as utopias do final do século XIX sobre o que seriam sociedades perfeitas: a ideologia das cidades jardins, cujo fundador é Ebnezer Howard, a ideologia da Ville Radiouse, de Le Corbousier, a ideologia da beautiful city, dos arquitetos e urbanistas americanos, que culmina no modo de fazer e compor cidades conhecido pela arquitetura modernista. São ideologias aparentemente distantes, mas todas marcadas pela mesma premissa básica: mudar o homem, transformar a natureza humana por meio da transformação do meio humano por excelência, o meio urbano. Como ela mesma afirma na p.322 que o objetivo de Howard era:

"(...) cristalizar o poder, as pessoas, e os usos e os aumentos de recursos financeiros segundo um modelo estático, facilmente controlável (...) sob as diretrizes rígidas de um plano empresarial monopolista [de forma a reinstaurar] uma sociedade estática, governada, em tudo que fosse importante, por uma nova aristocracia de especialistas em planejamento urbano altruístas[1]."

 

Jane Jacobs também se preocupa em apresentar as estratégias necessárias para poder financiar as melhorias urbanas e superar os cortiços. As forças necessárias para a criação de ruas capazes de oferecer segurança e diversidade para seus freqüentadores e moradores e as forças que impedem este mesmo desenvolvimento. Dentre os objetivos do planejamento a ser atingidos pelos planos físicos, a meta deve ser, na visão da autora:

1.    Fomentar ruas vivas e atraentes;

2.    Fazer com que o tecido destas ruas forme uma malha o mais contínua possível por todo um distrito que possua o tamanho e poder necessário para constituir uma subcidade em potencial;

3.    Fazer com que parques, praças e edifícios públicos integrem esse tecido de ruas; utilizá-los para intensificar e alinhavar a complexidade e a multiplicidade de usos desse tecido. Eles não devem ser usados para isolar usos diferentes ou isolar sub-distritos;

4.    Enfatizar a identidade funcional de áreas suficientemente extensas para funcionar como distritos.

 

Estas metas do planejamento são obtidas através e diversas medidas discutidas ao longo do livro, mas sempre tendo em mente a promoção da diversidade. Um fato interessante, é que as cidades que a autora procura descrever são aquelas em que é possível o pedestrianismo. O maior obstáculo para os deslocamentos a pé e a monotonia das ruas. A monotonia, ou Grande Praga da Monotonia como chama a autora, é vista como a maior inimiga das ruas e das grandes cidades. Quando as ruas tornam-se monótonas, elas afastam as pessoas. E ruas pouco movimentadas são, nas grandes cidades, um chamariz para a criminalidade.

            Esta observação decorre na idéia muito clara que Jane Jacobs tem do que é uma grande cidade: grande cidade não é uma coleção de cidades pequenas, justapostas: uma grande cidade é um local onde a grande maioria das pessoas com as quais nos relacionamos, fazemos trocas e compartilhamos os espaços públicos nos são predominantemente desconhecidos. Esta dinâmica das grandes cidades faz com que o controle social das ruas, que é exercido apenas parcialmente pela polícia, seja feito pelos olhos atentos de todos estes desconhecidos, e pela capacidade deles de intervir em favor de outros desconhecidos em caso de necessidade que só é possível através dos códigos implícitos de conduta.

            Neste ponto do livro, creio que há uma compreensão profunda por parte de Jane Jacobs do que é uma sociedade humana. Como bem ressalta o filósofo espanhol José Ortega-y-Gasset, a construção da individualidade face aos outros é dada pelos usos e costumes. Não precisamos dizer bom dia para uma pessoa que divide conosco o leito durante a noite, mas este uso é necessário para nos aproximarmos de um indivíduo desconhecido. A maior parte dos usos surge da interação entre as solidões humanas, que na vida urbana se dá permanentemente entre desconhecidos. Jacobs compreende esta necessidade da vida urbana, e ressalta que o controle social que impede a violência nas ruas é construído pela interação social, pela disseminação da "urbanidade" entre as pessoas recém chegadas às grandes cidades.

O livro Morte e Vida de Grandes Cidades, que em seu título original é mais específico, "The death and life of great american cities", ou seja, a morte e a vida das grandes cidades americanas, trás lições aplicáveis a todas as grandes cidades de diversas partes do mundo. Obviamente que as soluções apontadas para o problema dos cortiços não podem ser simplesmente transpostas para a abordagem das favelas enquanto problema urbano e social. Mas ainda assim, permite-nos compreender parte da vitalidade e da morbidade de bairros brasileiros das nossas grandes cidades.

Por fim, creio que vale a pena comentar o uso que tem sido feito da obra de Jacobs por conta de "urbanistas" brasileiros. A edição original do livro de Jacobs é de 1961. Esta obre foi traduzida para o português apenas em 2001, e até então Jacobs aparecia como uma notória desconhecida. Portanto, sua influência entre os idealizadores do Estatuto das Cidades é praticamente nula. O que não quer dizer que sua crítica ao urbanismo modernista não tenha servido de base para as obras "pós-modernas", principalmente para as críticas que foram feitas aos modernistas. Creio que o débito de Edward Soja e David Harvey[2] para com ela seja grande. Jacobs permite-se ser dura com os planejadores, porque, até onde sei não foi militante de qualquer ideologia estatizante, que veja no planejamento e no estado a redenção para uma humanidade degenerada, quer pelo capitalismo, quer pela urbanização ou ainda pela secularização.

Ao contrário de pessoas que criticam o planejamento urbano, mas propõem planos diretores para todos os municípios, que criticam a especulação imobiliária mas criam leis de direito de edificação, Jacobs propõem um planejamento não restritivo, que permita que a cidade seja feita e refeita pelos pequenos, médios e grandes empreendedores, e não deixada a cargo de monopolistas ou oligopolistas, sejam do estado ou de grandes corporações. Por isso os ideais de Jacobs, seu pensamento para as cidades são tão diametralmente opostos as propostas de Keynes para Londres, ou de Niemayer para as cidades brasileiras. Ela acredita e aposta na capacidade dos indivíduos em seguirem seus próprios interesses e em construir suas cidades e bairros. Ela acredita que a classe média surge da melhoria das condições sociais das classes baixas, e que a dinâmica das sociedades abertas é que permite a ascensão social, não a vontade altruísta de algum planejador.

A obra de Jacobs não é contrária a iniciativa privada, a iniciativa individual, a pobreza ou a riqueza. É uma obra contrária aos técnicos que se julgam esclarecidos e clamam do alto de suas cátedras por déspotas que lhes dêem poder para implantar suas distopias. O desenvolvimento urbano norte-americano, que na segunda metade do século XX se fez quase todo sob a égide da cidade jardim, levou a América a ser um país dependente do automóvel, das grandes freeways, com subúrbios que se estendem por milhares de quilômetros. Os subúrbios empurraram a agricultura para regiões áridas do meio oeste, e foram feitos na base da associação dos setores bancários e suas hipotecas, em conluio com construtoras de rodovias ligadas às construtoras de condomínios e shopping centers/malls.

O desenvolvimento urbano norte-americano foi especialmente afetado por ideologias do socialismo fabiano de Keynes e todas as intervenções dele decorrentes. A mesma lógica de desenvolvimento espraiado, suburbano, contamina as mentes dos planejadores brasileiros, e leva ao desperdício de espaço com gramados improdutivos que sequer cumprem adequadamente alguma função ambiental. Para compreender a obra de Jacobs e as demandas para a aplicação de seus princípios, é preciso se desvencilhar de qualquer tipo de ideologia de engenharia social, de controle social, e partir para uma perspectiva que vise descentralização do poder e intervenção controlada e pontual do Estado. Os esquerdistas, sejam tucanos sejam petralhas, não podem compreender e aplicar as idéias de Jane Jacobs, porque elas não servem para controle social. Ao devolver para as pessoas o controle, Jacobs apresenta uma visão extremamente libertária de cidade, que procurarei desenvolver em outros textos.



[1] Com a exceção do texto entre colchetes, os outros são citações diretas de Jane Jacobs. No entanto, as freses foram trabalhadas para compor esta frase, em prejuízo do contexto original, apenas para permitir a condensação do parágrafo numa citação curta.

[2] Vale ressaltar que enquanto Harvey fazia um livro de aplicação dos programas de reurbanização e planejamento regional que Jacobs abomina ela já havia publicado há quase 10 anos Morte e Vida de Grandes Cidades. Portanto sua obra é muito mais atual que a de qualquer dos geógrafos da Califórnia.



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