MARCO DO SANEAMENTO BÁSICO ESTÁ FADADO AO FRACASSO.


Por Fernando R. Ferro

O Brasil virou um país de memes já faz algum tempo. Mas nos últimos meses, precisamente desde janeiro do ano passado, a coisa desandou. O país se tornou um fantasma do que poderia ser. A decadência completa não veio porque algumas instituições estão impedindo que o país chafurde na lama de modo completo. Entre estas instituições estão o STF e o Congresso Nacional. Pois é. A presidência da república decaiu tanto que o Congresso e o STF tornaram-se os últimos bastiões da república.

Os governadores, obviamente, não têm feito papel melhor, com poucas exceções. Nestas poucas exceções, sem grandes méritos, dá pra incluir o governador de São Paulo, João Dória, que ainda mantém um pouco de sanidade. Talvez por isso ainda reste um pouco de dignidade no país, tendo em vista que São Paulo é o estado mais importante e responsável por 1/3 do PIB.

Agora voltando ao tema da presidência, a lista de infâmias do presidente é ridiculamente alta. A começar pelo fracasso completo na gestão econômica. Mas quero falar das supostas conquistas do governo Bolsonaro e vou começar pela principal reforma proposta até agora que foi o marco legal do Saneamento Básico.

A meta com este novo marco legal é atingir até 2033 99% de cobertura do acesso à água potável e 90% de acesso ao tratamento e coleta de esgoto. No processo, espera-se a revitalização de bacias hidrográficas, conservação do meio ambiente e redução das perdas de água. As principais mudanças no marco legal são a obrigatoriedade de licitação para os contratos firmados entre os municípios e as empresas estaduais de saneamento. A idéia é que com essa obrigatoriedade, os municípios devam abrir licitação e estimulem que empresas privadas concorram pelo serviço.

Quem conhece um pouco a questão do saneamento sabe, contudo, que o problema não é a falta de concorrência, mas a falta de atratividade dos serviços; fornecer tratamento de água sempre foi um serviço relativamente lucrativo; o problema é o tratamento de esgoto, que é caro e indesejado. Ainda mais em pequenas localidades. Para tanto, a nova lei obriga a formação de blocos ou grupos de municípios que implementem planos regionais de saneamento básico, sendo que a união poderá oferecer apoio técnico e financeiro para essa tarefa. Em tese, essa lei será regulada e fiscalizada pela ANA (Agência Nacional das Águas), que deverá fazer respeitar cláusulas de contrato, cumprimento de metas e realizar a regulação de tarifas.

Um plano tão bom em tese, não teria porquê ser criticado, certo? Aí entram as mentiras. De planos e intenções o inferno está cheio. Em 1996 quando começaram as privatizações dos serviços de saneamento a promessa foi igual; universalização do serviço, aumento da cobertura, chegada de investimento privado, melhoria da qualidade de vida e respeito ao meio ambiente. Duas décadas depois, estamos repetindo o mesmo discurso. Onde falhamos?

Como disse antes, o problema não é o mercado. Não há problema algum em fazer dinheiro privado ou gestão privada chegar em qualquer setor da economia. Só há problema em fazer o setor privado chegar nestes setores se eles não forem lucrativos. E um setor só se tornar lucrativo mediante três fatores:

1-      As despesas fixas somadas as despesas variáveis devem ser menores que as receitas fixas somadas às receitas variáveis;

2-      Os investimentos necessários devem ter um retorno previsível;

3-      O retorno desses investimentos deve ser igual ou (preferencialmente) superior ao que seria possível obter em outras aplicações de menor risco.

Em caso contrário, nenhum investidor privado colocará dinheiro em um determinado mercado. Porque haverá alternativas com melhor retorno, investimentos mais altos ou com menores riscos para seu capital. É uma continha simples de se fazer. No caso do saneamento básico, o governo imagina que é necessária uma quantia entre R$ 500 e R$ 700 bilhões de reais nos próximos 13 anos para garantir o cumprimento dessa meta. Ou seja, cerca de 50 bilhões de reais por ano o que é quase tudo que o governo federal coloca de dinheiro real em investimentos em infraestrutura (não estou falando aqui de dinheiro gasto tapando buracos ou reformando prédios públicos, mas construindo coisas novas).

Pro investidor retirar da carteira esse montante de recursos em 13 anos, esperando ter o retorno em 20 anos, os serviços prestados tem que ter uma taxa de retorno no mínimo mais atrativa que os títulos do tesouro de longo prazo, que hoje se situam na faixa de 6% ao ano. Ou seja, eles devem investir 50 bilhões ao ano, esperando um retorno superior a 6% ao ano, cobrando pra tratar água, esgoto de pelo menos 35 milhões de pessoas que mal tem o que comer nos dias de hoje. É um cenário muito otimista que somente um “Chicago boy” sem qualquer traquejo de mercado acredita que se resolve apenas com um “marco legal” novo.

Mas alguém pode me perguntar então o que é necessário para resolver esse problema. Obviamente, eu não tenho respostas prontas. Se eu tivesse, montava um curso na internet e atraía uma legião de fãs. Mas podemos nos basear na história de outros países, em especial dos EUA, que alavancou nos anos 1970 a questão do saneamento básico e do tratamento da questão ambiental a partir da criação da EPA (Agência de Proteção Ambiental, na sigla em inglês). Entre as 38 medidas solicitadas por Richard Nixxon ao congresso, estava o pedido de incluir US$ 4 bilhões de dólares (que na década de 1970 valiam mais que barras de ouro hoje) no orçamento dedicados a expansão de serviços de tratamento e coleta de esgoto por todo o país. Ou seja, muito dinheiro público sendo aplicado para coletar o cocô dos americanos, o que faz até sentido, tendo em vista que o governo Nixxon espalhou muita M... no ventilador depois. Mas o fato é o programa tem sido um sucesso, e a presença do governo federal é muito importante nos EUA para garantir o fornecimento de água potável para os americanos.

Qualquer marco legal que fizesse um pouco de sentido no Brasil não apontaria apenas para a privatização dos serviços ou para a obrigatoriedade de licitações. Licitações nunca impediram que serviços ruins fossem prestados tampouco que desvios de conduta fossem praticados. A rigor, licitações são uma péssima forma de contratação, ainda mais sob a batuta da lei 8.666 ou ainda sob as leis de concessão vigentes no Brasil. A Universalização dos serviços de água e esgoto, sobretudo em cidades pequenas, precisa mesmo é de meios para financiamento, seja ele executado por empresas públicas ou privadas. O maior custo de qualquer empreendimento no Brasil, sobretudo daqueles de longo prazo, é sempre o custo de capital. Em nosso país, o capital é um recurso escasso, caro e com muitas boas oportunidades de aplicação. Portanto, garantir esse recurso é o primeiro passo para garantir o sucesso de qualquer empreendimento.

Enquanto isso não for mudado, o marco legal do saneamento e suas metas não passarão de letra morta e, infelizmente, em 2033 eu poderei escrever um texto contando o tamanho do fracasso que foi o plano de universalização do saneamento básico no Brasil.

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