EVOLUÇÃO VERSUS NATURALISMO ou porque teólogos não devem se meter com matemática.

Por Fernando R. F. de Lima.            
No dia 14 de outubro foi publicado no Mídia sem Máscara um texto do teólogo Alvin Plantinga sobre a irracionalidade de se crer ao mesmo tempo no evolucionismo e no naturalismo, sendo este último o modo como ele define o ateísmo stricto senso, que nega até mesmo a causa primeira aristotélica ou outras formas de conceber o princípio do mundo. O autor, Alvin Plantinga, é professor do departamento de teologia de Yale e, aparentemente, esta sua argumentação, que vou reproduzir como citação longa, é uma importante contribuição para a desmistificação do ateísmo, principalmente, da irracionalidade de se crer em evolucionismo e naturalismo, como ele define, ao mesmo tempo. O que me motivou a escrever este texto, contudo, é um grosseiro erro de interpretação da teoria da probabilidade que, uma vez corrigido, tira o embasamento da tese central do Plantinga. O cerne do argumento é o seguinte:
Então considere qualquer crença particular da uma parte de uma dessas criaturas: qual é a probabilidade que esta seja verdade? Bem, o que nós sabemos é que a crença em questão foi produzida pela neurofisiologia adaptativa, neurofisiologia que produz comportamento adaptativo. Mas como nós temos visto, isto não nos dá nenhuma razão para pensar que essa crença seja verdadeira (e nenhuma para pensar que seja falsa). Nós devemos supor, portanto, que a crença em questão tem tanta probabilidade de ser falsa quanto de ser verdadeira; a probabilidade de qualquer crença particular ser verdadeira está perto de 1/2. Mas então é solidamente improvável que as faculdades cognitivas dessas criaturas produzam preponderantemente crenças verdadeiras sobre falsas conforme exigido pela confiabilidade. Se eu tenho mil crenças independentes, por exemplo, e a probabilidade de qualquer crença particular ser verdadeira é 1/2, então a probabilidade de que 3/4 ou mais dessas crenças são verdadeiras (certamente uma exigência modesta o bastante para confiabilidade) será pouco menos do que 10(-58). E mesmo se eu estivesse trabalhando com um modesto sistema epistêmico de apenas 100 crenças, a probabilidade de que 3/4 delas sejam verdadeiras, dado que a probabilidade de qualquer um seja verdadeira é de 1/2, é muito baixa, alguma coisa como 0,000001[7]. Então as chances de que as crenças verdadeiras dessas criaturas substancialmente sobrepujem suas falsas crenças (mesmo numa área particular) são pequenas. A conclusão retirada é que é extremamente improvável que suas faculdades cognitivas sejam confiáveis.(PLATINGA, 2013)
Para qualquer um que se sinta impressionado, por este argumento, que necessita um certo conhecimento sobre probabilidades, dou a dica: não se impressione. Obviamente, uma primeira leitura nos deixa chocados, porque a lógica parece contradizer o exposto acima. Como pode a probabilidade se reduzir tanto se no início cada crença individual tinha 50% de chance de ser verdadeira? Note também que o autor afirma que, diante do exposto, “é extremamente improvável que as crenças cognitivas sejam confiáveis”. Digamos que a probabilidade de que ¾ (75%) das crenças sejam verdadeiras, fosse maior, talvez 1%, este argumento se manteria? Se fosse de 25%?
O erro do autor consiste em confundir probabilidade do evento com probabilidade condicional. Se jogamos um moeda não viciada para cima, a probabilidade de que dê cara no resultado é de 50%. Se jogarmos esta moeda 250 vezes para cima, o resultado esperado é que 125 vezes dê cara. Ou seja, em eventos aleatórios, a probabilidade não depende do número de repetições. No entanto, o autor propõem que a chance de uma crença qualquer ser verdadeira seja de 50%. Daí ele supõem que para que ¾ das crenças sejam verdadeiras, a probabilidade em 100 eventos seria igual a 0,00001%. Mas esta só seria a probabilidade correta se quiséssemos saber qual a chance de que as 75 primeiras crenças analisadas fossem verdadeiras, ou, usando as moedas, que em 100 lançamentos obtivéssemos cara 75 vezes consecutivas.
No entanto, se lançarmos 100 moedas não viciadas ao mesmo tempo, qual a probabilidade de que tenhamos ¾ de caras, e ¼ de coroas? A resposta é 25,74% de que ¾ dos lançamentos resulte em caras. Isto porque o espaço amostral será composto de todos os eventos possíveis. Montando o espaço amostral, veríamos que nós poderíamos ter como resultado que todas as crenças são falsas. Este seria um evento possível em 101. A mesma probabilidade existiria para que todas as crenças fossem verdadeiras. Da mesma forma, para que uma fosse falsa e 99 verdadeiras, e assim por diante. No final nas contas, teríamos que cada uma das possíveis combinações teria como resultado a possibilidade de 0,99% de ocorrer. Isto é, se quisermos que exatamente 75 das 100 crenças estejam corretas, a chance é de 0,99%. Mas se quisermos todos os eventos nos quais pelo menos 75 das 100 crenças estejam corretas, a probabilidade é de 25,74%.
Este é um probleminha básico de ensino fundamental e me surpreende que alguém tão conceituado se deixe iludir por um argumento tão obviamente errado, que acaba derrubando toda sua argumentação. Mais ainda que gente séria se impressione com um raciocínio tão obviamente errado. Devemos ver ainda que não é extremamente improvável que nossas faculdades cognitivas sejam confiáveis quando atribuímos 50% de probabilidade delas acertarem. Ao contrário, é relativamente provável (1% é uma chance muito maior do que de acertar os 6 números da megassena num universo de 60 números), que a cada 100 crenças analisadas 100 delas estejam corretas, o mesmo valendo para o oposto, que 100 delas estejam erradas. Não há nada de surpreendente nisto.
Afinal de contas, há muitas crenças que ao longo do tempo foram sendo desmentidas pela experiência. E várias outras que foram sendo confirmadas. O raciocínio científico consiste fundamentalmente em analisar nossas afirmações com base nas experiências, procurando causalidades e explicando relações de dependência entre as coisas. A pesquisa constante para saber como estas causalidades se interligam, nos leva a resultados cada vez mais próximos daquilo que chamamos de verdade científica, que sempre tem um caráter provisório. A idéia básica do método científico é justamente criar caminhos para que possamos analisar os pressupostos e saber se eles são verdadeiros ou falsos, de modo que nossas conclusões possam ser alcançadas por outros.
Portanto, é altamente provável que mesmo sem uma análise prévia das opiniões das pessoas sobre vários assuntos que estas opiniões correspondam à realidade. Isso explica, por exemplo, porque a humanidade, mas também todas as outras espécies viventes, conseguiram se adaptar e sobreviver com base nas informações coletadas e avaliadas por seus sentidos. Também mostra porque, a partir do momento em que o ser humano começou a avaliar criticamente suas crenças, seu poder de controle sobre a natureza aumentou tanto, a ponte de hoje conseguirmos viver ao menos 4 vezes mais que a média de nossos ancestrais pré-agrícolas. 
Não quero com este texto endossar que as críticas que pessoas como Dawkins fazem à religião são integralmente verdadeiras. Mas sim mostrar que apesar de haver várias maneiras de defender a fé, mas o mau uso da matemática não é um dos métodos mais inteligentes.

Abaixo o link texto:

Comentários

Luis Diniz disse…
Acabei de ler o seu texto e acho que ficou muito bom. O livro "O Andar do Bêbado" comenta vários casos de erros na avaliação de probabilidades que decorrem do fato das pessoas fazerem as perguntas erradas. No caso, o tal Platinga faz cálculos com amostras hipotéticas de 1.000 e de 100 afirmações como se as probabilidades associadas a fenômenos aleatórios e independentes se alterassem de acordo com o número de ocorrências. Mas, como você notou muito bem ao citar os exemplos das moedas, a probabilidade de cair cara ou coroa não se altera conforme o número de lançamentos, e há uma diferença enorme entre esperar 75 repetições consecutivas de um mesmo resultado em 100 lançamentos e esperar 75 resultados de um mesmo tipo num universo de 100 lançamentos simultâneos.

Uma coisa que o seu texto me fez pensar é que uma das falácias do autor está em tratar o conjunto das tais "crenças cognitivas" de forma abstrata, o que o conduz à suposição de que todas elas têm probabilidade de 50% de verdadeiro ou falso. No entanto, há uma grande diferença entre enunciados que derivam de experiência prévia e enunciados produzidos só por raciocínio lógico.

Seu eu chuto uma parede e formo a "crença cognitiva" de que chutar paredes causa dor no dedão, a probabilidade de que essa crença esteja certa é de 100%. Já se eu disser que a desigualdade de renda é a principal causa da violência, em virtude da revolta das pessoas de menos posses com sua situação, terei uma "crença cognitiva" derivada de uma relação de causa e efeito deduzida logicamente e, assim, a probabilidade de acerto é de apenas 50%. Para saber se esta última "crença cognitiva" é verdadeira ou falsa, terei de usar a observação, comparando indicadores de desigualdade com indicadores de criminalidade. Ora, os dados brasileiros provam que a desigualdade caiu ao mesmo tempo em que a criminalidade aumentou, o que torna a probabilidade da alternativa "verdadeiro" igual a zero. No máximo, seria possível cogitar que a desigualdade de renda pode ter algum peso nas taxas de criminalidade, mas jamais afirmar que essa é a causa principal. Verificar essa nova hipótese demandaria mais dados e/ou um tratamento estatísticos mais refinado das informações já existentes.

Nesse sentido, as "crenças cognitivas" baseadas em observações feitas em laboratório e/ou em campo, como são as teorias científicas, possuem uma confiabilidade crescente à medida em que são submetidas a mais e mais observações. Todavia, o autor supõe que a probabilidade de resultado verdadeiro ou falso fica estacionada sempre em 50% baseando-se apenas no espaço amostral dos dois julgamentos possíveis sobre a validade de um enunciado, o que é completamente sem sentido.

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