NÃO HÁ RESPOSTA SIMPLES PARA SOLUCIONAR A CRISE

Um dos resultados da crise internacional dos sub-prime que estourou no segundo semestre do ano passado é o reavivamento do debate sobre as teorias econômicas do "mainstream" e os "outsiders". Há tempos que se discute se a teoria econômica deve ser mais keynesiana ou mais neoliberal ou conservadora. A discussão sobre os pacotes e as alternativas para superar a crise levou mesmo a frases e questões como esta abaixo:

"Se antes os bancos eram acusados de emprestar muito agressivamente, agora eram acusados de muito conservadorismo. Se os americanos eram acusados de consumismo irresponsável, agora demandavam mais gastos deles. E o próprio governo, que tanto pregou a luta por casas mais acessíveis, estava agora fazendo de tudo para evitar a queda nos preços das casas. Para onde foi a meta de casas acessíveis? Woods questiona se algum traço de pensamento racional ainda pode ser encontrado em meio a tanta insanidade." (Constantino, R.)[i]

Aqui está uma questão que não está sendo levada em conta, mas que tanto Mises quanto Hayek apontam em seus trabalhos. No livro "Ação Humana" há até uma frase do Mises que ficou gravada na minha cabeça sobre a questão da inflação. A inflação é a principal forma de avaliar que se a taxa de juros está artificialmente alta ou baixa de acordo com a teoria dos ciclos econômicos de Von Mises. Se há inflação, dentro desta visão, é porque há um excesso de moeda no mercado. Então, quando há excesso de moeda o caminho é aumentar a taxa de juros para conter a inflação. Este é o mecanismo básico de regulação que tem sido adotado em todo o mundo para controlar a oferta e demanda por moeda.

No caso da frase famosa, do Mises, ele dizia que uma vez atropelado o pedestre (isto é, uma vez que a inflação tivesse aparecido por conta do excesso de gastos), dar a marcha à ré não ajudaria a crise passar (a marcha à ré seria a deflação, isto é, a queda generalizada no índice de preços). Portanto, mesmo os liberais austríacos defendem que o ajuste para condições monetárias reais deveria ocorrer num contexto de preços neutros, e não de deflação, para evitar prejuízos maiores no sistema monetário. Só que para aumentar os gastos num contexto de crise econômica, a única maneira eficaz encontrada pelos economistas, independentemente da escola econômica de origem, é o aumento do consumo.

INFLAÇÃO E DEFLAÇÃO

Vou tentar resumidamente explicar o que acontece num contexto de inflação e de deflação do ponto de vista dos devedores e dos juros. Quando o índice de preços está subindo, isto é, inflação, o devedor é beneficiado. Porque os empréstimos, no mundo todo, são em geral tomados em taxas pré-fixadas. Portanto, se eu emprestar 1000 para pagar 10% ao ano, e a inflação for de 5%, eu na verdade estarei tomando um empréstimo a 5%, porque a moeda estará se desvalorizando.

Em geral o credor já calcula o "prejuízo" da inflação e o adiciona na taxa de juros. É o que se chama de juros reais. Se a inflação se acelerar, isto é, houver aumento do crédito na praça por conta de juros baixos, os credores terão um prejuízo maior, mas os devedores terão um lucro maior que o esperado. O credor poderá recuperar o prejuízo emprestando mais dinheiro para o devedor, que tomará o empréstimo segundo a nova taxa.

No caso de deflação, isto é, quando os preços diminuem, o risco de quebradeira generalizada é muito grande. Porque o credor irá receber mais pelo dinheiro, já que houve uma apreciação. E o devedor não terá como pagar por um novo empréstimo mais barato, porque já não conseguirá cobrir as despesas correntes. Com isto, os bancos não terão como emprestar dinheiro, pois de um modo geral, as pessoas estarão numa situação financeira ruim, recebendo menos por seus produtos do que o que era esperado.

Para evitar que isto aconteça um dos instrumentos regulatórios utilizados é a redução da taxa de juros, para que o dinheiro extra no mercado force os preços a subir e mantenha o nível de preços equilibrado, preferencialmente com uma leve taxa de inflação. Uma deflação, por menor que seja, é muito mais prejudicial para a economia do que a inflação. A teoria dos ciclos econômicos de Mises foi pensada para um contexto em que a moeda era lastreada no ouro. Ou seja, a moeda de reserva era o ouro. Cada país e seu sistema bancário deveriam manter uma quantidade de moeda estocada para poder cobrir eventuais saques.

Num contexto de inflação acelerada, o ouro seria apreciado, ou seja, mais pessoas desejariam trocar mais papel moeda por ouro. Um ajuste de preços deveria se dar num contexto em que assumir a nova paridade cambial da moeda corrente com o ouro seria a solução mais rápida para o excesso de liquidez, ou seja, de moeda, na economia. Acho que não preciso nem me alongar sobre as diferenças existentes entre se utilizar um bem físico, no caso o ouro, como moeda de lastro e o caso atual, em que a moeda de reserva é o próprio papel moeda e este não está lastreado em nenhum bem tangível, como dizem os contadores.

O que aconteceu nos EUA é uma espécie de falha dos mecanismos regulatórios. Mas nem um deles agiu longe da teoria ortodoxa, que é "liberal". Ou seja, os mecanismos de regulação agiram para evitar a deflação. Quando o preço das casas e das commodities começou a despencar, principalmente o dos imóveis, isto puxou o índice de preços para baixo. A deflação tornou-se inevitável. A teoria liberal de regulação é relativamente clara em relação aos riscos da deflação, por isso a taxa de juros foi reduzida. A mesma coisa ocorreu em 2001, quando houve uma queda nos preços, tanto de commodities quando de imóveis e ações (pelo 11 de setembro e pela crise da bolha da internet). Obviamente, as casas tornaram-se bens muito mais baratos e acessíveis do que estavam antes da crise, mas nem por isto este se tornou um cenário desejável.

A queda dos juros naquele momento não foi algo irresponsável como muitos dizem. Ela não visava apenas uma expansão monetária como forma de reativar a demanda agregada, mas foi tomada visando evitar a deflação que se anunciava. Muitos, de forma ressentida, argumentam que quando há crise nos EUA e na Europa eles baixam os juros e quando há crises no "terceiro" mundo a receita é aumentar os juros. Não há contradição nisto. Aqui a crise é causada por inflação, lá por medo de deflação, portanto a "receita" deve ser inversa mesmo. Sem contar que como as economias do terceiro mundo crescem mais rapidamente, o risco de inflação aqui é muito maior. Tanto que uma vez instalado o contexto de deflação, como o que ocorreu no Brasil nos primeiros meses do ano, as autoridades monetárias rapidamente trataram de diminuir a taxa básica de juros o que, aliás, deveria ter sido feito antes.

ESTRUTURA DOS PREÇOS

O Presidente do FED não agiu errado de acordo com nenhuma das teorias. A questão toda é outra. A questão é a composição dos índices usados para medir a atividade econômica. Quando você avalia apenas o índice de preços, como é feito hoje no mundo todo, mas ignora o "quantum", isto é, a quantidade de bens negociados, acaba-se tendo uma impressão errada sobre o que é inflação ou deflação e o que é uma mudança estrutural nos preços, tanto para cima como para baixo.

Vou dar um exemplo de uma possível mudança estrutural nos preços montando um cenário para a indústria automobilística. A tendência nos últimos 50 anos no mercado de automóveis é que os carros mais novos sejam mais caros que os carros da "geração" anterior, porque a cada nova geração de veículos, mais tecnologia é acrescentada ao produto. Os fabricantes de automóveis, olhando a renda dos trabalhadores, que vem crescendo de forma praticamente ininterrupta, imaginam que a cada década, mais ou menos, os consumidores irão desejar veículos maiores, mais seguros, mais potentes e mais sofisticados.

Com isso, a tendência na indústria automobilística é que o preço dos veículos aumente. Isto pode forçar o índice de preços para cima, fazendo com que através deste produto haja uma leve força atuando para a inflação dos preços. Mas esta é uma mudança estrutural. Quando um novo fabricante, como a indiana Tata, por exemplo, apresenta um novo produto no mercado, de grande volume, com preços muito baixos, ele pode jogar o índice de preços para baixo.

Isto porque a expectativa deste fabricante é vender uma quantidade muito superior de automóveis por um preço muito mais baixo que a média de mercado. Um regulador da taxa de juros desavisado poderia ver nesta mudança na tendência dos preços um risco de deflação, e com isto baixar a taxa de juros, o que facilitaria, teoricamente, a volta de um crescimento no índice de preços. Da mesma forma, este carro de grande volume poderia aumentar o preço de determinados insumos da indústria, como aço, por exemplo, o que poderia ser interpretado como ameaça de inflação. A decisão, portanto, poderia ser tomada de forma equivocada se não for considerada a mudança estrutural dos preços.

O caso do petróleo e das commodities ilustra bem isto. Há uma mudança no índice de preços deles causada, sobretudo pelo aumento do consumo, isto é, dos "quanta" negociados, e não por excesso de crédito. O consumo cresceu mais rapidamente que a oferta de alimentos e de petróleo. Isto levou o governo de vários países do "terceiro mundo" a aumentar a taxa de juros no começo de 2008 para conter a inflação. Só que não havia inflação no horizonte, já que os preços estavam mudando por razões estruturais. O aumento nos preços ocorria em razão de uma alteração do mercado.

Nos EUA o aumento destes preços estava levando as pessoas a "quebrarem", porque seus gastos cresciam mais rápido que suas rendas. Esta tendência havia sido contrabalanceada pela queda no preço de bens industrializados, causado pelas importações de países asiáticos, principalmente. Na União Européia, a queda relativa da renda estava sendo compensada pela queda nos custos de produção, devido a incorporação de países de salário mais baixo no bloco europeu. Quando o consumo destes novos mercados começou a crescer, ele forçou uma mudança na estrutura dos preços de bens básicos.

A renda nos países "centrais", para usar um termo comum que descreve o conjunto de economias da OCDE, estava em partes baseada em rendimentos monetários provenientes de operações no mercado de futuro, isto é, nas expectativas em relação ao comportamento futuro dos preços. Era assim com os imóveis, e também com os vários outros produtos no mercado. Esta previsão em relação ao futuro mudou pouco; todo mundo acha que o mundo irá continuar crescendo nos próximos anos. Mas o preço dos imóveis não acompanhou esta tendência, porque seu preço subiu menos do que era esperado. E esta "deflação" no preço dos imóveis, e de vários outros bens ligados a indústria de construção (minérios, madeira, aço, máquinas, petróleo, etc.) acabou por levar a uma quebradeira generalizada dos devedores, que por sua vez afetou numa extensão muito grande a estabilidade financeira dos credores (bancos).

A macroeconomia de hoje é falha e as teorias "liberais" ou "keynesianas" clássicas e neoclássicas são insuficientes para uma adequada regulação do mercado de moeda porque há um descolamento da teoria em relação à realidade micro-econômica das empresas. No caso dos mecanismos de avaliação dos índices de preço, que são a base da macroeconomia keynesiana, há problemas na formação destes índices, inclusive nos cálculos de produto.

Já nas teorias como a da escola austríaca, há uma falta de mecanismos para avaliação de questões microeconômicas, como a avaliação de risco. Quando se modificam as normas contábeis, a percepção ao risco, aos lucros e aos prejuízos muda. Ninguém dentre os liberais austríacos está atento às mudanças nas regras de contabilidade que estão ocorrendo no mundo todo. Isto tem um impacto direto na microeconomia das empresas.

Um componente muito importante da crise, portanto, é a questão da avaliação incorreta dos riscos, sobretudo por parte dos bancos. Esta avaliação pode ter sido propositalmente incorreta, isto é, mesmo sabendo do risco de seus empréstimos, os bancos preferiram apostar na todas as fichas na alta, esperando um socorro dos governos na baixa, mas isto é uma hipótese apenas. Com os riscos de deflação causada, sobretudo, pela eminente queda nos preços, era visível que a atitude do FED seria reduzir taxas de juro para estimular o consumo (e alta nos preços). Mas isto tem um efeito (negativo) ainda maior na rentabilidade dos bancos.

Pode-se também argumentar que o FED está utilizando-se de instrumentos keynesianos, basicamente a expansão da moeda, para estimular a demanda, aquecer o mercado e a partir daí retomar o crescimento. Isto explicaria as baixas taxas de juro. Mas Keynes sugeria estes mecanismos em contextos inflacionários, para dissipar (ou na opinião de seus detratores prolongar) a bolha que gerara a crise. No caso atual, a bolha já estourou e a objetivo é evitar a deflação e o aprofundamento da crise.

Neste ponto a estrutura dos preços é importante. Porque apesar da crise acentuada, o preço dos alimentos se modificou pouco. E o preço do petróleo caiu muito em relação aos praticados no ano passado, mas ainda estão muito acima dos patamares de cinco anos atrás. Isto é, o preço de várias destas commodities não irá deflacionar-se muito em relação aos preços anteriores. A bolha durou muito menos tempo do que dizem (alguns falam que ela é a mesma desde 1995). O preço dos imóveis nos EUA pode estar baixo agora, mas o déficit habitacional por lá ainda é grande, e está concentrado nas regiões onde há mais casas. Portanto, a uma expectativa de reativação do ciclo de crescimento num prazo não muito longo. A crise irá servir, principalmente, para reposicionar os imóveis no mercado. Casas grandes em subúrbios distantes talvez continuem se desvalorizando, por causa do preço crescente da energia. A crise, de um modo geral, apenas acelerou as mudanças.

QUESTÃO MONETÁRIA

O dólar é uma moeda "apreciada", isto é mais cara que as outras, em praticamente todos os países emergentes. Um dólar compra proporcionalmente mais que as outras moedas. Isto é causado em parte pelos estoques de dólar, ou seja, pelas reservas internacionais (cerca de 60% das reservas estão em dólar), e em parte por causa de políticas de câmbio deliberadamente desvalorizadas, como é o caso da Coréia do Sul, da China, Japão, Taiwan, Índia, etc. Isto cria um "desequilíbrio" no mercado norte-americano, principalmente porque fica difícil para as empresas daquele país concorrer na fabricação de produtos e na oferta de serviços com aqueles países. Por conta do câmbio, algo produzido nestes países será sempre mais barato que algo produzido nos EUA.

O principal ajuste que a crise atual está causando não está relacionado ao déficit americano, que irá crescer no curto e possivelmente médio prazo. O principal ajuste será no preço relativo das outras moedas em relação ao dólar. Os EUA, uma vez depreciada sua moeda, irão se tornar relativamente mais pobres, com salários mais baixos, o que lhes dará algum fôlego competitivo extra. O mesmo inverso irá ocorrer com os países asiáticos de apreciarem suas moedas. Algum processo de substituição de importações acabará ocorrendo nos EUA.

A questão é como se dará este processo. Uma primeira alternativa é através do ajuste monetário de mercado. Se ele ocorrer, a Coréia irá perder competitividade em alguns setores, a China em outros, e os EUA irão ganhar em vários outros. Em geral, os americanos são muito mais eficientes na produção de bens de grande valor, porque tem um grande mercado de consumo para estes bens, o que lhes confere escala para exportar. A segunda via será através de barreiras protecionistas, que poderão ser erguidas de ambos os lados (seja nos EUA, seja nos mercados asiáticos). Esta segunda opção é a mais temerária, sobretudo para países como o Brasil. Caso isto aconteça, nós teremos sérios problemas para competir com a busca por novos mercados dos Asiáticos e americanos, e enfrentaremos problemas para exportar os poucos produtos em que somos competitivos.

Um ajuste pela via da moeda seria melhor para nós, porque já atuamos há mais de dez anos em regime de câmbio flutuante (apensar das fortes intervenções do nosso banco central) o que faria do ajusto monetário algo mais rápido e menos traumático. A segunda opção representaria uma dificuldade maior, pois deveriam ser feitas opções estratégicas focadas no longo prazo, e o futuro é sempre muito turvo para ser vislumbrado. Um ajuste via mercado seria mais gradual e mudaria as coisas sem grandes traumas. Um ajuste pela via do protecionismo, ou seja, do intervencionismo, tornaria o cenário mundial um jogo de soma zero, onde necessariamente uns perderiam para alguém poder ganhar. A economia mundial irá superar esta crise, como já superou outras tantas. A questão é o custo disto. Como diz aquela frase, podemos ter uma crise tão grande quanto estejamos dispostos a pagar.



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