A VOLTA DA POLARIZAÇÃO ESQUERDA E DIREITA
Por Fernando Raphael Ferro
Hoje, 29 de outubro, no Estado de S. Paulo, o
professor Denis Rosenfield comentou a volta da polarização entre esquerda e
direita no Brasil. Ele comentou o fim do predomínio da esquerda no campo
político, cuja cena foi dominada pela dualidade PT/PSDB desde 1994 até 2014, e
a ascensão nesta última eleição de um novo antagonismo marcado por duas faces
de uma nova direta: aquela mais conservadora, representada por Jair Bolsonaro,
e outra mais liberal, no sentido econômico clássico e não no sentido americano
do termo, representada por João Amoedo.
Aí começamos a questionar as razões que levaram
a esta ascensão da “direta” no país, uma vez que a “esquerda” ocupa ainda
praticamente todos os nichos culturais de peso: as artes, a música, as universidades
e fundações e as redações dos principais jornais ainda são predominantemente de
esquerda e guardam claramente um viés “social-democrata”. As pautas do
politicamente correto avançaram ano após ano por meio dos grandes meios de
comunicação, dominando a linguagem e os modos de expressão no país. Ainda assim
ocorreu essa virada que, em última instância é cultural.
Denis Rosenfield atribuiu a Jair Bolsonaro a
capacidade de perceber a insatisfação popular com as pautas da esquerda quando
foi virtualmente desconsiderada a votação no plebiscito sobre o Estatuto do
Desarmamento, cujo resultado foi administrativamente rejeitado. O texto dá a
entender que este é o momento que marca uma certa ascensão da direita.
Mas a considerar algumas ideias, inclusive
ventiladas por Olavo de Carvalho, a ascensão da esquerda não teria sido
possível sem a hegemonia cultural conquistada nos meios acadêmicos e culturais.
A criação de uma cultura e o predomínio das mídias de esquerda levou a
popularização desta “ideologia”, ou destes conjuntos de ideia. E se o ambiente
cultural realmente explica as transformações políticas em ambientes
democráticos, qual queria sido a razão do crescimento da direita?
Olhando o cenário brasileiro retrospectivamente,
e os movimentos que cresceram no país, assim como as figuras que passaram a
desempenhar um papel de oposição nos últimos anos, o que vemos é um crescimento
dos movimentos conservadores vinculados diretamente com as igrejas, sobretudo
as evangélicas. O fenômeno não é recente. Mas as igrejas pentecostais cresceram
muito na década de 1990 e 2000, e passaram inclusive a apresentar um papel de
grande relevância no meio cultural. Isso se deu não tanto a partir da criação
de “think tanks”, como apregoado, mas principalmente por meio de canais de TV,
rádios, e do trabalho diário dos pastores evangelizando comunidades.
A contracultura conservadora e liberal que
surge no Brasil, dever-se-ia, desse modo, menos ao surgimento de iniciativas
como o Instituto Millenium ou ao Partido Novo, e muito mais às igrejas
evangélicas e seu trabalho de base. E suas pautas, que levaram a oposição
ferrenha ao PT. O próprio Escola sem Partido, apesar de não ter uma clara
vinculação religiosa, foi abraçado pelas bancadas evangélicas no congresso
nacional, nas legislaturas estaduais e municipais país afora.
Demais pautas realmente derivam deste
movimento: movimento contra o aborto, contra o ensino da ideologia de gênero
nas escolas, contra o estatuto do desarmamento, combate as drogas ilícitas, cuja
luta contra o estado acabou abraçando outras bandeiras, entre elas o
liberalismo, empreendedorismo, e demais valores tradicionalmente afeitos à
direita tradicional.
Desta forma, poderíamos dizer que hoje contamos
com duas grandes forças culturais no país, que representam dois grandes blocos
ideológicos distintos: ao lado da social-democracia e demais ideologias
tecnocráticas, temos a academia, o universo cultural marcado pelo Projac e
parte do universo pop brasileiro, sobretudo de origem carioca; do outro lado,
um conservadorismo quase liberal meio caipira, apoiado nas igrejas e nas suas
redes de radiodifusão, contando com a linguagem musical também pop, mas fora do
circuito Rio-Grande São Paulo.
Certamente essa dualidade irá se manifestar em
breve numa oposição crescente entre Globo e SBT/Record nos próximos anos, e
continuará a guerra de guerrilha nas redes sociais mais difusas. O universo pop
também irá manter seu campo de batalha, tendo de um lado o eixo do pop do eixo
Rio-São Paulo, e na outra ponta os estilos regionais surgidos quase que
espontaneamente nos grandes shows locais e popularizados via youtube. Ou seja,
por mais que Bolsonaro tente unificar o país, essa polarização veio para ficar,
e deverá se aprofundar nos próximos anos.
Não que seja ruim; essa divisão em campos
antagônicos de oposição e situação bem definidas, antes de ser um retrocesso, é
parte do próprio processo democrático. Um desvio nefasto era a falsa dicotomia
PT/PSDB, que para usar as palavras do próprio João Amoedo, nunca foram
opositores, mas apenas concorrentes do mesmo campo ideológico. Talvez 2018 seja
realmente o ano do nascimento da democracia brasileira, em que dois campos
ideologicamente opostos finalmente encontram em candidatos a presidência ecos
na eleição. E talvez agora esses campos permitam, nos próximos anos, o avançar
de reformas políticas que permitam o fim de um sistema político tão
disfuncional quanto o criado a partir da constituição de 1988, que era um
prolongamento de um sistema já antigo oriundo dos anos 1960.
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