O PENÚLTIMO REFÚGIO DOS CANALHAS

Por Fernando R. F. de Lima.
 
O tema Desenvolvimento Regional/Urbano sempre desperta acaloradas discussões nos meios acadêmicos, porque, de certa forma, este é o penúltimo refúgio dos canalhas. Derrotada em todos os campos das ciências sociais, o marxismo e as interpretações que atribuem os males do mundo a uma suposta dialética de luta de classes, tenta impor ao campo espacial a mesma lógica furada das classes sociais. Deste modo, regiões pobres seriam pobres porque exploradas por regiões ricas. A economia, em última instância, seria a explicação para as causas da pobreza ou da riqueza.
Em praticamente todos os mais lidos autores da geografia vemos interpretações deste tipo. Para ficar com o mais mitificado da geografia[1],  Milton Santos, no livro ‘Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos’, propõem a ideia de que haveria dois circuitos (inferior e superior), dialeticamente relacionados, na economia urbana dos países subdesenvolvidos:
Proposta por Milton Santos, a teoria dos dois circuitos da economia urbana busca explicar como as cidades dos países periféricos como o Brasil funcionam a partir de dois subsistemas urbanos: o subsistema superior – composto pelas grandes empresas, bancos, atividades ligadas ao ramo da alta tecnologia – e o subsistema inferior – composto pelas atividades de pequena dimensão, com o uso de mão de obra intensiva, que se cria e se recria com pouco capital. (...) Os dois subsistemas urbanos são formas de produzir, distribuir, comercializar e consumir que geram materialidades distintas, visíveis na paisagem urbana. No entanto, esses dois circuitos se relacionam dialeticamente a partir da complementaridade, subordinação e concorrência. As cidades expressam esses dois circuitos a partir dos lugares opacos e dos lugares luminosos, que são polaridades, mas não dualismos. (SILVA, 2012[2])
Silva prossegue a interpretação da teoria de Santos evidenciando que:
A teoria dos dois circuitos da economia urbana surge no sentido de explicar o funcionamento da cidade a partir da relação entre os grupos sociais privilegiados e os menos abastados dentro da sociedade de classes, sendo que tais grupos criam formas urbanas que revelam o profundo imbricamento entre esses grupos. Falar dos imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo é também falar das grandes empresas do comércio varejista do vestuário como C&A, Zara, Pernambucanas, Marisa, entre outras. Não é possível afirmar que essas empresas sejam totalmente formais. O circuito de produção da C&A, Zara, Pernambucas e Marisa[4] passa pelo uso de mão de obra imigrante precarizada e não formalizada. O funcionamento do circuito espacial de produção do vestuário sofreu reorganização na década de 1990 e a principal inovação das grandes empresas do ramo foi o uso da subcontratação de oficinas de costura de forma sistemática. A maioria dessas oficinas apresenta problemas em sua formalização.  Desta forma, a economia formal e informal se mistura e essa categorização perde o sentido. Além disso, a divisão da economia em formal e informal, do ponto de vista geográfico, não explica a relação entre a cidade rica e abastada e a cidade pobre. (SILVA, 2012 – grifo meu)
Daí pode-se entender que a dependência entre os dois circuitos implica exploração dos imigrantes bolivianos, em geral informais, pelas empresas formais do comércio varejista. Sposito[3] detalha também a teoria de Milton Santos, mantendo a interpretação de que os dois circuitos, além de imbrincados, relacionam-se de modo assimétrico. Isto porque a “reprodução” do circuito inferior ocorre com pouco capital, gerando renda e emprego para grande parcela da população desfavorecida dos países subdesenvolvidos, que através das atividades tradicionais acabam gerando “valor” para a o circuito superior. Este é composto pelas grandes cadeias de lojas, os bancos, e as fábricas, que ficam a maior parte dos ganhos na comercialização dos produtos fabricados no segmento inferior.
Esta teoria, no final das contas, é um remendo para tentar explicar a existência de pequenos capitalistas em países subdesenvolvidos, sobretudo nas grandes “metrópoles” latino-americanas, que nas oficinas de fundo de quintal empregam mão-de-obra de forma precária. Obviamente, também é um meio de transmitir a responsabilidade pela existência deste “circuito inferior” às grandes empresas que atuam regularmente no mercado. Assim, a existência de uma oficina de fundo de quintal seria na verdade fruto indireto da presença de grandes indústrias automobilísticas, que de alguma forma criariam valor para si mesmas através da exploração do segmento inferior.
Este raciocínio tortuoso serve para tentar justificar porque a divisão de classes em burguesia e proletariado não se aplica ao mundo subdesenvolvido, sem entrar no mérito da questão de que ela também não se aplica ao mundo desenvolvido. Mas criando-se uma exceção, tenta-se elaborar uma regra, que por sinal é tão precária quando a divisão original. Isto porque a existência de pequenos capitalistas e de uma classe média tão rica quanto os pequenos empresários é tão velha quando a existência de cidades. O mundo nunca foi dividido entre os muito ricos e os muito pobres. Há sempre pessoas que não estão nem num extremo nem em outro. E quanto mais aprofundada a divisão do trabalho numa sociedade, isto é, quanto mais livres forem seus membros para produzir, consumir do modo como bem entenderem, mais difícil torna-se criar tipologias de grupos homogêneos.
Outro meio que as teorias do desenvolvimento regional adotam para justificar o emprego das teorias proto-, para-, pré- e pós-marxistas e pelo emprego da personificação de regiões. O estudo do regionalismo adota a lógica da luta de classes entre regiões da mesma forma que o estudo do imperialismo o utilizava para explicar a luta colonial. Ou seja, as regiões mais ricas exploram as regiões mais pobres, extraindo delas o “valor” para a reprodução ampliada do capital em outro lugar.
Este tipo de raciocínio não vem de hoje e foi empregado de modo nada criativo desde a década de 1970 e até antes. Diniz Filho (1999)[4] aponta os  equívocos do uso do noção de uma dialética espacial para explicar como regiões pobres tem seu valor transferido para regiões ricas, dando ênfase ao trabalho de Edward Soja, mas não apenas. Aqui no Brasil, a explicação econômica baseada no conceito de centro-periferia, de certa forma herança da “teoria econômica” de Lenin, tem sido empregada para justificar a existência e a persistência de desigualdades.
E para provar a “maldade” do capitalismo vale até mesmo distorção da informação. Aa ânsia de provar que o capitalismo gera desigualdade, inclusive e especialmente espacial, utilizam de instrumentais estatísticos para “provar” suas teorias, que no fundo passam a ser apenas descrição de tabelas. Este fato é comprovado por um trabalho realizado por um instituto de pesquisa do Paraná, no qual eu trabalhei[5], em que “provou-se” a natureza dividida do território paranaense através de estatísticas oficiais. Para tanto, foi utilizado um expediente muito capcioso: adotou-se como referência um percentual ideal da distribuição da riqueza entre os municípios do Estado: 0,25%. O número mágico surgiu depois de se dividir 100% por 399 municípios.
Depois foram analisadas as distribuições percentuais do Valor Adicionado Fiscal em três momentos históricos: anos 1980, 1990 e 2000. A conclusão foi que cada vez mais municípios estavam situados abaixo dos 0,25%, e que menos municípios possuíam participações elevadas. Isso mostraria, obviamente, a concentração cada vez maior da riqueza.
Os mentores do trabalho só “esqueceram” de mencionar que em 1980 havia 290 municípios, 323 em 1990 e 399 em 2000. Com isso, a divisão ideal para uma comparação honesta seria 0,35% em 1980 e 0,31% em 1990, para aí discutir a concentração ou desconcentração. Obviamente, o resultado mostraria desconcentração e não concentração. A simples mudança do índice de referência mudaria o resultado da análise, além de torna-la um pouco mais lógica, em que pese o fato de que é absurdo querer que 399 unidades econômicas com área territorial, população, clima, topografia, pedologia diferentes tenham a mesma participação na economia estadual.
Com toda a fragmentação política que ocorreu no período, ainda assim teria havido concentração econômica? A princípio, parece ilógico. Quando a analisamos os dados, seguindo a mesma metodologia, mas respeitando os novos percentuais, vemos que o quadro é diferente. Com o “aprofundamento da divisão social e territorial do trabalho”, um eufemismo para crescimento econômico, as disparidades no Estado diminuíram ao invés de aumentar. Fiz este exercício na época da publicação do Estudo, no final de 2006.
Aliás, qual seria a verdadeira causa das disparidades regionais? Autores da geografia clássica costumavam condicionar as diferenças de desenvolvimento entre as sociedades às características do meio natural. Este tipo de pensamento ficou conhecido como determinismo geográfico. As explicações que dizem que as desigualdades decorrem das características intrínsecas do capitalismo podem ser chamadas de determinismo econômico. Mas onde reside a causa da desigualdade entre regiões?
Economistas dedicados ao tema já conseguiram provar que quando eliminamos (estatisticamente) as diferenças nas dotações de recursos e no custo de vida, as desigualdades regionais praticamente desaparecem no Brasil[6]. A explicação das diferenças de renda entre as regiões seriam:
- As regiões mais ricas possuem trabalhadores com mais anos de estudo (portanto maior produtividade) que as regiões mais pobres;
- As regiões mais ricas possuem custo de vida mais elevado que as regiões mais pobres;
- Os trabalhadores das regiões mais ricas trabalham mais horas que os trabalhadores das regiões mais pobres;
Assim, ao comparar dois trabalhadores de mesmo perfil socioeconômico, com a mesma idade, descontando as diferenças de custo de vida entre eles e o número de horas trabalhadas, o resultado seria que ambos, apesar de localizados em regiões diferentes (o Nordeste e o Sudeste, por exemplo), teriam a mesma renda. Assim, a explicação para a desigualdade regional reside fundamentalmente nas diferenças condizentes à dotação de fatores de produção. As que possuem melhores condições para a agricultura, produziram mais produtos agrícolas; as que possuem recursos humanos melhor qualificados produzirão e distribuirão mais riqueza para estes cidadãos[7].
Este tipo de visão mostra que as políticas de desenvolvimento regional baseadas em subsídios e atração de empresas estão, no geral, fadadas ao fracasso se não forem acompanhadas de qualificação de pessoal. Se o nível escolar fosse o mesmo em todo o Brasil a desigualdade por si só seria muito menor. E se não houvesse tanta disparidade de renda entre gerações (entre velhos e jovens), causada em grande parte pelas distorções de nosso sistema previdenciário, a desigualdade de renda como um todo seria muito menor no país. O detalhe a que poucos se atêm é que nenhuma destas duas causas são frutos do capitalismo, mas da incompetência do setor público em ofertar (ou deixar que outros ofertem) serviços de qualidade nestas duas áreas (educação e previdência)[8].
No entanto, estas avaliações econômicas sobre desigualdades regionais, que realmente consideram instrumentais analíticos sérios, estão à margem da geografia. Os poucos trabalhos que realmente procuram investigar o processo apontam na direção contrária (tem havido desconcentração), mas sempre se busca explicações que deturpem a visão clara do panorama geral. Deste modo, discutir desenvolvimento regional, sobretudo sobre o prisma da desigualdade continua sendo um excelente refúgio para as viúvas e órfãs do socialismo. E a cada nova bobagem, uma plateia de foquinhas surge para aplaudir e corroborar as evidências da concentração perversa e cruel, mesmo quando o que a informação mostra é exatamente o contrário.



[5] Não vou dizer o nome do trabalho tampouco o Instituto por razões éticas/estéticas.
[6] Sobre esta questão vale a pena ler atentamente o livro de Alexandre Rands Barros, Desigualdades Regionais no Brasil. Há um capítulo todo dedicado a esclarecer as razões da desigualdade.
[7] Neste aspecto, vale a pena considerar também a desigualdade de oportunidades e a baixa mobilidade intergeracional de renda, analisada no artigo a seguir. Isto reforço a ideia de que a melhor política para redução de desigualdade é aquela que aumenta a oportunidade dos cidadãos de se tornarem mais ricos, o que passa, necessariamente, pela educação. http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/8/1021
[8] Pode-se ainda destacar a ação do próprio poder público na criação de desigualdade, como nesta matéria da revista Exame, baseada em estudo do IPEA. http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1038/noticias/e-o-estado-piora-esta-diferenca

Comentários

Luis Diniz disse…
Excelente artigo! Vou repassar para os meus alunos de geografia econômica.

A propósito, é interessante notar que o Milton Santos elaborou a teoria dos dois circuitos na mesma época em que os sociólogos latino-americanos debatiam a teoria da dependência com vistas a entender como os supostos mecanismos de dependência atuavam no interior dos países, e não apenas no âmbito das relações econômicas internacionais. Daí eles afirmarem que os mercados de trabalho formais e informais constituíam duas faces da mesma moeda, e que as periferias urbanas eram produzidas pelos mesmos mecanismos econômicos econômicos que levariam os países pobres a ser explorados pelos ricos. Nesse sentido, a teoria dos dois circuitos era tão-somente uma versão espacializada das teorias da dependência. Tudo o que o Milton fez foi usar expressões "circuito superior" e "circuito inferior" como metáforas para falar de coisas como "subemprego", "periferização", "heterogeneidade estrutural", e assim por diante.

Enfim, ele usou o espaço para falar de exploração e dominação de classes, exatamente como você disse, e nem sequer teve de quebrar muito a cabeça para chegar a essa ideia, pois bastou ler o que se produzia na sociologia da época.

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