ENTREVISTA – ANDRÉ DE BARROS – A GEOPOLÍTICA NO SÉCULO XXI

    Esta é a primeira de uma série de entrevista que procurarei publicar ao longo deste ano no blog, como uma oportunidade para os leitores terem contato com pessoas brilhantes, dotadas de opiniões consistentes que situam-se longe da grande mídia. As opiniões presentes na entrevista não necessariamente correspondem às minhas próprias, inclusive porque parte dos assuntos discutidos não são de minha alçada de conhecimento, apesar de serem de meu interesse particular.

André de Barros, o primeiro entrevistado do blog, é bacharel em direito, formado pela UNICEUB do Distrito Federal (2001). Autodidata em geopolítica e tantos outros assuntos, conta com um vasto conhecimento sobre história militar. Para André, o predomínio dos EUA pode estar apenas começando, ao contrário do indicam muitos analistas viciados na retórica antiamericana. Segue abaixo a entrevista por e-mail realizada no mês de janeiro de 2010.

 

Democracia e Liberdade. - Quais os maiores desafios geopolíticos colocados no início do século XXI?

 André. Não sei se existem desafios. O que há é a geopolítica normal, Estados-nações com seus interesses. Os maiores problemas costumam estar onde estão os países principais. EUA, Rússia, França, Alemanha, Inglaterra, China, Japão, etc. E há os lugares problemáticos para os quais não existe solução, como o Oriente Médio, Índia e Paquistão, Afeganistão, etc. São todos problemas velhos, o século pode ser novo, porém tudo nele é muito antigo. Certas coisas não mudam muito ou mudam muito lentamente. Quando algo se altera, tem relação com eventos passados que persistem há séculos. Ainda assim, o mundo se transforma bastante a cada 25 anos, em média. Algumas tendências seriam a ascensão da Turquia, da Alemanha e, mais tarde, do México e Brasil; o colapso da Rússia atual daqui a uns vinte anos, a queda e fragmentação da China e a supremacia quase absoluta dos EUA, que talvez esteja só começando e pode durar no mínimo até 2100, se não se estender por mais tempo. Quem sabe, uma guerra mundial comece por volta de 2050 ou 60, provavelmente com Turquia, Japão e  Alemanha enfrentando os EUA, Polônia e China. A ciência deve dar um salto nas duas próximas décadas, na minha imaginação, que certamente seria considerado um exagero, mas vai acontecer. Sobretudo a engenharia genética. E o espaço será cada vez mais militarizado, o que é natural.  

 

DL. Dentro desta visão, quais as perspectivas para a Rússia?

André. A geopolítica russa agora consiste em aproveitar ao máximo, e enquanto ainda há tempo, o fato de os EUA estarem sobrecarregados e atolados de serviço no Iraque e no Afeganistão. Com isso,  e apesar da devastação que a crise subprime causou na economia russa, eles têm algum tempo para consolidar seu poder na Ásia Central. Essa consolidação é lógica, e o mínimo a ser feito para começar a conter a ofensiva norte-americana em sua esfera de influência.

Nos últimos 12 meses, o PIB russo caiu 9.5%, enquanto o norte-americano caiu 2.6% e o da União Européia, 4,4%. Estatisticamente, o declínio econômico na Rússia foi comparável ao da Grande Depressão nos EUA.

Tal queda deveria ter devastado a economia, a sociedade e a política do país. De acordo com as regras para outros lugares, a queda deveria ter se refletido dentro da Rússia, com desemprego em massa muito além dos 11% constantes, protestos e um governo quebrado. Mas a Rússia raramente segue as regras, e nada disso aconteceu, por certo pela habilidade do governo de controlar o povo e a indústria.

Ela já está pondo na linha as ex-repúblicas soviéticas, pelos mais diversos meios, e deixando claro para os EUA e a Europa que não será mais humilhada como foi nos anos 90, na província sérvia do Kosovo. A invasão da Geórgia foi um aviso de que revoluções pacíficas como as que instalaram governos pró-Ocidente em outras repúblicas não serão mais toleradas.

 

D.L. Por que a Rússia foi humilhada no Kosovo?

André: A guerra do Kosovo foi um dos fatores determinantes, e o mais importante, da queda de Yeltsin. A ascensão de Putin e dos nacionalistas teve vários motivos, mas se originou fundamentalmente nos eventos ocorridos no Kosovo.

Foi uma guerra feita sem autorização da ONU, por conta da oposição russa e chinesa.  Os EUA e os demais poderes europeus desconsideraram a posição russa. Mais importante, ficou estabelecido o precedente de que não era necessária autorização da ONU para começar uma guerra, precedente usado por Bush no Iraque. Em vez disso, eles disseram que o apoio da OTAN legitimava a guerra.

Isso transformou a OTAN em uma quase ONU. No Kosovo, ela assumiu o papel de pacificadora, com força para determinar se uma intervenção era precisa, intervir militarmente e determinar os desdobramentos.

Como a Rússia não era um membro da OTAN, e como ela foi ignorada, a campanha de bombardeios criou uma crise com o Ocidente. Os russos viram o ataque como unilateral e contra um aliado russo, sem justificativa. Yeltsin não estava preparado para uma confrontação, nem poderia. Menos do que aceitar, eles admitiram que não tinham opção.

A guerra não correu bem. Os bombardeios não forçaram uma rendição e a OTAN não estava preparada para invadir o Kosovo. Os ataques aéreos continuaram inconclusivamente até que o Ocidente se voltou para os russos, querendo negociar um fim.

Assim que o acordo foi assinado, a Rússia enviou tropas para o aeroporto de Pristina, pra que elas assumissem suas funções na força multinacional de paz, como o fizeram na guerra da Bósnia, anos antes. Ficou implícito no acordo que tropas russas garantiriam  a soberania e os interesses sérvios.

Logo tiveram que se retirar. Os russos nunca foram vistos como parte da operação de paz ou do processo decisório sobre o Kosovo. Eles se sentiram duplamente traídos, primeiro pela guerra em si, depois pelos arranjos de paz.

 

DL. Como isso afetou a política interna russa?

André. A guerra do Kosovo afetou diretamente a queda de Yeltsin. A facção em torno de Putin o via como um idiota incompetente que permitiu que a Rússia fosse usada e traída. A percepção russa da guerra reverteu completamente a política nacional.

Essa reversão foi alimentada sobretudo pela percepção de que a OTAN deixou de ser uma aliança militar para se tornar uma substituta da ONU, arbitrando na geopolítica regional. A ONU não era mais a entidade principal de manutenção da paz. A OTAN assumiu esse papel na região e agora iria se expandir ao redor de toda a Rússia.

E então veio a independência do Kosovo. A Iugoslávia se fragmentou nas entidades que a constituíam, mas suas fronteiras nacionais não mudaram. Eis que, pela primeira vez desde a II Guerra, foi feita a decisão de alterar as fronteiras da Sérvia, em oposição aos desejos sérvios e russos, com o órgão autorizador sendo, na verdade, a OTAN. Foi uma decisão avidamente apoiada pelos norte-americanos.

Em 17 de fevereiro de 2008, o Kosovo declarou independência e foi rapidamente reconhecido por um pequeno número de países europeus e outros aliados dos Estados Unidos. Mesmo antes da declaração, os europeus já haviam criado um corpo administrativo para o Kosovo. Por meio da União Européia, eles acertaram pequenos detalhes, como a data da declaração.

Em 15 de maio, durante uma conferência em Ekaterinburg, os ministros das relações exteriores da Índia, Rússia e China fizeram um pronunciamento contra a independência do Kosovo. Os norte-americanos rejeitaram esse pedido, como haviam rejeitado todos os argumentos russos sobre o assunto.

O problema não era que os europeus e americanos não ouvissem os russos. O problema era que eles simplesmente não acreditavam nos russos — eles não os levavam a sério.

Em compensação para tudo isso, havia o fato de que a OTAN tinha negligenciado seu próprio poder militar. Os russos, não. E agora eles estavam numa posição em que podiam fazer algo e o fizeram: invadiram a Geórgia.  

 

DL. Sobre a relação entre a China e Rússia, o que se pode esperar para os próximos anos?

 André. Quanto à China, apesar da sua fronteira com a Rússia ser um dos lugares mais inóspitos da Terra (parte da Sibéria) e do fato de que ambos têm problemas demais, o bastante para que não tenham tempo nem oportunidade de entrar em conflito, sempre há alguma tensão. A China vem fechando grandes contratos de energia com várias ex-repúblicas soviéticas. Um gaseoduto enorme já sai do Turcomenistão, passando por mais um ou dois países até o Cazaquistão e de lá para a China. Nada que preocupe os russos, por enquanto.

O governo chinês começou a aumentar a população próxima à fronteira há pouco mais de dez anos, transferindo grupos aos poucos para lá. Os russos sabem disso, mas não tem como fazer nada. Falta gente na Rússia inteira e em 50 anos a população vai encolher muito, será um desastre demográfico. As taxas de natalidade são baixas, as de mortalidade, desnutrição e nascituros deformados são altas, a AIDS e outras doenças matam demais, há mulheres demais, homens de menos — e, em geral, elas preferem se casar com ocidentais, desde que estes possam tirá-las do país.

 

DL. E o caso do Irã? Qual o papel da Rússia no processo?

André. Sobre o Irã, a Rússia é quem menos quer ver o vizinho com armas nucleares. São inimigos naturais, desconfiam um do outro. Na II Guerra a Rússia invadiu e ocupou por um tempo uma parte considerável do território iraniano, coisa de que eles ainda se lembram. O Irã, porém, se deixa usar pela Rússia, até certo ponto, para fazer avançar seus interesses locais e no Levante. Para os russos essa manipulação favorece, obviamente, seus próprios interesses — na região e muito além dela. Por exemplo, é uma maneira de manter os EUA ocupados. Prometem aquilo que sabem que jamais, ou dificilmente, vão dar como sistemas de mísseis e tecnologia nuclear substancial.

 
Fernando R. F. de Lima
www.democraciaeliberdade.com.br
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P
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Comentários

INTERCEPTOR disse…
Parabéns pela inciativa, Fernando e ao André pelas respostas.

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