CIVILIZAÇÃO E LIBERDADE

Fernando R.

 

O livro Imperialismo Ecológico, de Alfred Crosby, vai em busca de razões que explicam o sucesso dos europeus na colonização no Novo Mundo e da Austrália, nas regiões que ele conceitua como "neoeuropas". Entre os diversos fatores de sua adaptação a estas novas terras, coloca os fatores ambientais ou ecológicos, como os animais, plantas e micróbios, que auxiliaram na obtenção de alimento e no combate as populações nativas. Há neste livro algumas observações interessantes, que permitem fazer algumas analogias, ainda que indevidas.

Quando trata dos animais, sobretudo dos porcos, cavalos e o gado bovino, deixa claro que o se abandono os fazia bravios e, em alguns casos, até mesmo selvagens. O gado bovino, que é normalmente dócil a presença humana, tornava-se agressivo, furioso e extremamente ameaçador. O mesmo se dava com os porcos e também com os cavalos. Nem os ratos escapavam deste retorno a um estado selvagem, que chegava a ser ameaçador ao ser humano.

 

 

Nas nossas grandes cidades o desrespeito pelas regras básicas de convivência tornou-se uma coisa cotidiana. Muito frequentemente nos deparamos com cenas que deveriam ser inverossímeis, como pessoas cruzando preferenciais sem parar, avanço de sinal vermelho, tráfego de veículos pela calçada ou contra-mão entre outras condições deploráveis. O trânsito muitas vezes chega a um estado de guerra, com motoristas se atracando a socos e ponta-pés no meio dos congestionamentos. Motociclistas adotam comportamentos absolutamente irracionais, como velocidades incompatíveis com o espaço e as condições e do veículo, o que resulta em milhares de mortes ao longo do ano.

Mesmo as supostas autoridades de trânsito apresentam comportamentos irreais; viaturas da política com farol queimado avançam o sinal vermelho, estacionam em cima de calçadas para se deslocar até a padaria e ligam a sirene para desviar do tráfego sem nenhum propósito. Quem nunca presenciou uma cena destas, certamente ou é muito distraído ou não vive numa cidade grande, populosa mas numa ilha de civilidade. Regras básicas de convivência deixaram, aparentemente, de funcionar.

Nas escolas, é comum os alunos ignorarem os professores, e conversarem sem qualquer constrangimento durante a aula; também é comum o desrespeito completo aos inspetores, faxineiros e parece que ninguém está muito preocupado com isto. As crianças correm, gritam, berram como animais, e não se sentem afrontadas diante da presença de adultos ou autoridades. Mesmo os marginais agem abertamente durante o dia, sem qualquer constrangimento em relação a presença de outras pessoas ou da polícia. O que está, afinal, acontecendo?

 

 

Ao ler sobre o retorno ao estado bravio dos animais antes domesticados, associei esta questão com o que tem ocorrido nas nossas cidades. A pergunta que me faço é onde estão e o que estão fazendo as autoridades responsáveis por policiar as pessoas, desde as crianças, até os adultos, e desde os honestos pagadores de impostos até os marginais. As prefeituras, departamentos de polícia, corpos de bombeiro, escolas e aqueles que fazem isto tudo funcionar, como os funcionários públicos, policiais, professores e também os pais estão todos por aí, no mundo, às voltas com seus trabalhos. O problema não é a falta de pessoas para exercer a autoridade. O capital humano está lá, fisicamente ao menos, apesar de visivelmente ausente em espírito.

A resposta, creio eu, é que o policial não policia. Não tem o senso de dever, a noção das regras que devem ser obedecidas. Se um pedestre desavisado for cruzar a rua fora da faixa, em frente ao policial, ele não irá repreende-lo. Assim como também não irá parar e avisar e se necessário multar o motorista que dirige com o farol queimado, já que ele mesmo não está ciente da necessidade das regras que deveria cumprir.

O professor não irá impor sua autoridade em sala de aula, nem exigir silêncio, simplesmente para evitar complicações burocráticas e medidas que lhe tomariam tempo nem sempre com resultados compensadores. Os diretores estão as voltas com processos administrativos que não se relacionam com o ensino, assim como os conselhos tutelares, desejosos de reduzir o trabalho de suas assistentes sociais.

Nas casas, os pais estão preocupados em ganhar a vida, comprar novos produtos e buscar a "felicidade", preenchendo o vazio existencial momentaneamente com um novo carnê dentro do bolso, sem tempo a perder com o trabalho ingrato e chato de educar crianças. Com todas estas regras a cumprir, mas sem propósitos que as justifiquem, fica a sensação de desamparo e  abandono. A civilidade e a civilização não estão mais em nós, nos policiando, nos inculcando o senso de dever para com todos. Estamos como o gado deixado a própria sorte nas lhanuras das grandes cidades, no campo aberto que é a vida moderna.

Mas isto não acontece em todo o mundo, em todos os lugares, como muitas vezes tentam nos fazer crer. É um fenômeno local. Outros lugares já passaram por isso, certamente em situações e momentos diferentes, mas não da mesma forma e intensidade. Parece que desistimos da civilização, de educação, da urbanidade, do ensino, das artes; parece que desistimos do "espírito".

Há pessoas que vão pela linha inversa de argumentação: dizem que o problema, na verdade, é a "auto-domesticação". As cidades são o problema. São a fonte do vício, da decadência, da degradação. A vida humana não evoluiu nas congestionadas urbes, mas nos pequenos grupos, espalhados pelas savanas e florestas do planeta. O consumo, o progresso, o tempo, estes são os verdadeiros fatores de confusão e angústia social. Parte do pressuposto que um retorno às condições imemoriais talvez seja a única saída para a humanidade, antes da destruição completa da vida.

Já apresentei vários argumentos para desmontar estas teses. Para mostrar que esta idéia está errada como projeto; que nunca existiu este paraíso humano, e que as condições de vida antes das grandes cidades eram satisfatória apenas quando todos os outros fatores iam bem. Alterações no clima local, na flora e fauna, ou a disseminação de uma nova bactéria ou uma parasita ameaçavam a existência de todo o grupo social. A insegurança e a fome eram uma ameaça constante.

Além disso, mesmo o homem "selvagem" conviva em grupos, maiores ou menores, e tinha que seguir algumas regras para a aproximação e convivência com estranhos. Os grupos mais fortes ameaçavam os mais fracos, onde a força muitas vezes significava juventude e saúde, mas sobretudo número. Os grupos maiores e mais coesos eram capazes de escravizar os grupos menores e menos protegidos, e não hesitavam em faze-lo. O estado de natureza, para relembrar Hobbes, era um estado de guerra de todos contra todos.

A criação do Estado - contemporânea das outras grandes criações humanas, como o cultivo e domesticação de plantas e animais, a formação de cidades, a exploração de minas, a metalurgia, o aumento da complexidade da religião e o desenvolvimento da escrita - foi o que ajudou a reunir as condições para garantir a um número cada vez maior de pessoas a oportunidade de viver. Alguns consideraram este o grande erro da humanidade: para fugir dos lobos na floresta entramos num labirinto que nos leva ao estômago do minotauro muitas vezes mais cruel.

Mas é na civilização, na civilidade, no projeto de criação do indivíduo que reside a saída para nossos problemas, e não na sua negação. A civilização, ao contrário do que sugerem alguns autores, não é a apenas a construção de cidades. A civilização é aquela cola imaterial que liga as pessoas, cola feita de regras, de rituais, de verdades latentes, quase intuitivas. Mas esta cola não surge do nada; ela é ensinada.

Quando eu fiz uma resenha parcial da obra de Norbert Elias, comentei que uma das principais contribuições deste autor que eu via neste autor era o destaque que ele dava para o fato (quase um truísmo) de que o "indivíduo" é fruto da sociedade. Sem a sociedade, o indivíduo é apenas um "espécime". É a  educação que nos torna indivíduos; são os auto-controles - controle do tempo; controle das vontades - que nos permitem considerar nossos graus de liberdade e de dignidade.

É este é um processo civilizatório, que ensina as pessoas o que é lícito e não lícito, bonito e feio, legal e ilegal, justo e injusto, que apresenta e propõem padrões, modelos, ideais; é isto que falta à sociedade brasileira de hoje. Talvez não falte em todos os lugares, nem para todos. Mas carecemos dele, visivelmente. O liberalismo, enquanto ideal supremo de valorização dos indivíduos, não pode prescindir da civilização e suas regras. Não existiria o futebol, para usar uma metáfora tão clara e cara aos brasileiros, se não houvessem regras para atingir o objetivo de marcar gols. E mesmo com as regras, existem ainda outras critérios, que não são subjetivos, mas são sociais, no sentido de estarem latentes em todos apesar de não serem explícitos e codificados, que permitem diferenciar o "fair play" do jogo sujo, o futebol arte do mecânico.

Nossas cidades têm funcionado muitas vezes como uma máquina, sem o azeite que é o fair play. Algumas pessoas seguem as regras, outras tentam fazê-las cumprir. Mas perdeu-se a civilidade, ou seja, o senso do que é desejável e o que é jogo sujo. Não superaremos esta etapa sem tomar ações para que isto ocorra. Talvez, até mesmo retornemos para um estado de guerra de todos contra todos. Um cenário apocalíptico, terminando num retorno a barbárie e a degradação completa, com fragmentação política, guerra civil e tudo o que acompanha estes males.

Temos, contudo que ter em mente, e ensinar isto as pessoas, que a civilização não é uma dádiva; ela não é parte da natureza humana. Ela é um ideal construído, às vezes ao custo de muito sangue derramado. Temos que ter uma razão para acreditar que vale a pena lutar pela civilização, pela civilidade. Precisamos de valores, novos e resgatados, que mostrem o lado ruim, negativo, tenebroso da barbárie. Não se trata de uma nova religião, ou do resgate de alguma religião ou tradição, mas da busca pela perfeição, ainda que ela seja inatingível, e ainda que esta tarefa seja ingrata.

Sem isso, o gado bravio,que quando tratado converte-se num ser drogado (seja por remédios, álcool, cocaína, crack ou maconha) continuará existindo e se expandindo, causando mais e mais problemas; Talvez o estado se converta apenas num aparelho de controle desta manada, cada vez mais automatizado, chegando um dia que se dispensa humanos para esta tarefa, bastando o controle pontual das dosagens. Sem a auto-imposição, o auto-controle e a busca pela verdadeira liberdade, que é ser livre, pensante, autônomo e altivo mesmo vivendo rodeado de milhões de seres semelhantes, em ideais e propósitos, seremos conduzidos a condição de rebanho humano, tornando-nos dispensáveis ao próprio funcionamento da sociedade, se é poderemos chama-la deste modo.

 

 

Muitas vezes, quando penso sobre estas questões, imagino que esta é uma batalha perdida. Penso como será o país e nossas cidades daqui há dez ou vinte anos. Acho que a probabilidade de decairmos num estado de barbárie semelhante ao que assola vários dos países africanos, por exemplo, ou o Haiti, é pequena. Acredito até mesmo que estaremos mais ricos daqui há dez ou vinte anos. Mas não sei se estaremos melhor; talvez vivamos menos tempo e com menor qualidade; talvez não tenhamos mais um lugar quieto para ficar a sós, e nem sintamos falta destes lugares pelo fato de sequer pensarmos nisto. Mergulhados neste cotidiano, iludidos por uma falsa prosperidade, talvez esquecemos e nem mesmo nos surpreendamos mais com as barbaridades descritas no início deste ensaio. Talvez seja este o futuro.

Mas talvez não; eu gosto de imaginar que minha filha viverá num mundo melhor. Que mais pessoas caminharão pelas ruas; mais esportes novos e desafiadores serão praticados e sobretudo muito mais conhecimento inundará as prateleiras de livrarias, transbordando para as salas de aula e entrando nas salas de jantar. Sinceramente, gostaria de viver num mundo onde mesmo numa grande cidade meus netos pudessem ir a padaria sem que sentíssemos medo de que eles fossem atropelados, mutilados, violentados ou seqüestrados. Espero que meus esforços ajudem a construir este mundo melhor, este mundo que seria menos angustiante para mim. Imagino que este sonho, que é também um projeto, só irá se concretizar, se voltarmos a acreditar que a civilização e a liberdade civilizada são desejáveis, viáveis e necessários para a busca da felicidade.

 



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