TRIBUTOS E REPRESENTAÇÃO – PARTE 2: DE ONDE VEM OS RECURSOS DOS MUNICÍPIOS

TRIBUTOS E REPRESENTAÇÃO – PARTE 2: DE ONDE VEM OS RECURSOS DOS MUNICÍPIOS

 

            Esse segundo texto tratando dos tributos e da representação política é um esboço de um estudo que pretendo aprofundar um dia, dando uma contribuição maior e mais apropriada de compreensão do processo de crescimento caótico das cidades brasileiras e o contraste existente entre o nosso modelo de urbanização e aquele seguido por outros países.

            Creio que a questão fundamental para compreender a desordem urbana no Brasil está relacionada diretamente a origem dos recursos para as obras municipais levadas a cabo pelos prefeitos. Antes dos municípios tornarem-se entes federativos, os recursos necessários para sua administração provinham, de modo geral, dos fundos de participação nos tributos, que eram arrecadados pelos estados e pelo governo central. A divisão observada em vários países, na qual os impostos sobre a renda e o comércio exterior pertencem á união, os impostos sobre a venda e circulação de mercadorias e serviços pertencem aos estados e os impostos territoriais aos municípios em geral nunca foram observadas de modo claro no Brasil.

            Durante vários anos da república velha, os impostos sobre a exportação eram arrecadados pelos estados, e o imposto fundiário, sobretudo sobre as propriedade rurais, eram arrecadados pela união. Os municípios, em geral, sempre sobreviveram da transferência de recurso, já que a arrecadação de impostos prediais sempre foi problemática, por ser impopular, e necessitar de um aparato de estado organizado para cumprir tal fim. Desse modo, os municípios não foram pressionados no sentido de garantir recursos provenientes da população, e o prefeito aparecia como um intermediários entre o estado e o povo, que buscava garantir recursos extras para esta ou aquela comunidade. Isso garantiu o personalismo na eleição de prefeitos e vereadores no país.

            Como não dependiam dos tributos fundiários, não sentiam-se pressionados no sentido de regularizar o uso da terra, que é uma importante ferramenta de racionalização da arrecadação de tributos. Além disso, podiam dispor de terras devolutas da união ou do município como uma estratégia de barganha para com os pobres, permitindo a moradia nessas áreas em troca de votos, moradia que se estabelecia sem qualquer vínculo formal, isto é, sem registro, e, consequentemente, sem a necessidade de pagamento de tributos. Os impostos que a população pagava (e paga ainda) são, em geral, cobrados na fonte, ou seja, do produtor, que simplesmente os repassa ao consumidor. Assim, o consumidor paga o imposto como se fosse uma parte do preço do produto, envolvido no custo de produção, e não como um dever cívico. A bem da verdade, o brasileiro pobre ainda hoje não sabe o que é pagar impostos.

            Nas cidades dos EUA, por exemplo, o prefeito é um interessado no crescimento da população local por ampliar a base de arrecadação da prefeitura. No Brasil, o prefeito preocupa-se com o aumento da população apenas no sentido de aumentar sua base eleitoral, sendo que não existiu, durante muito tempo, uma vinculação entre população e recursos. O ITR (Imposto Territorial Rural) é um tributo arrecadado diretamente pela união, e na maior parte dos municípios brasileiros o IPTU representa muito pouco na arrecadação municipal. Vou dar alguns exemplos relativos ao Paraná que poderão ser replicados em escala nacional.

            A tabela acima diz respeito ao município de Califórnia, no interior do Estado do Paraná, próximo a Londrina. Em 2000, esse município possuía 7.678 habitantes. Das receitas correntes do município, 87,8% provinham de transferências, da união ou do estado, e somente 9,3% de tributos arrecadados, isto é, IPTU e ISS. Isso significa que o prefeito desse município pode, se quiser, ignorar a arrecadação de tributos, favorecendo a instalação de novos moradores na periferia, já que o crescimento de sua base de tributos depende basicamente do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que tem como critério distributivo o tamanho da população. Vejamos o mesmo caso para o município de Curitiba, capital do Estado.

Em Curitiba, 37% das receitas provinham das transferências do Estado, e 51% do esforço próprio de arrecadação, isto é, a receita tributária (IPTU + ISS) e receita de serviços (transporte, taxas, etc.). No primeiro caso, aproximadamente 90% dos recursos da prefeitura independem do esforço do prefeito. No segundo caso, apenas 37%. Isto significa que dificilmente Curitiba poderia parar de cobrar IPTU ou ISS, pois desse modo o prefeito não teria recursos para pagar pelas obras, empréstimos, e serviços que demanda para garantir seus votos, e uma má arrecadação destes tributos significaria perda de popularidade. Por outro lado, significa que a população de Curitiba fica muito mais interessada na qualidade dos serviços, pois todos os anos recebe o carnê do IPTU, que caso não seja pago, pode implicar em problemas com a justiça.

Vou dar um terceiro exemplo, que é de um município da região metropolitana de Curitiba que cresce muito em população graças a loteamentos irregulares. Creio que isso é fundamental para explicar porque os prefeitos dos municípios da região metropolitana de Curitiba podem ser displicentes em relação a aplicação de uma lei de regulação fundiária, e podem se dar ao luxo de não arrecadar tributos de seus cidadãos.

Em Colombo, 68% dos recursos provém de transferências, e apenas 12% de esforço tributário próprio. Em Colombo é comum a prática de isenção ou quase isenção de ISS, o que leva várias empresas a se registrarem em Colombo, apesar de funcionarem em Curitiba. É uma espécie de guerra fiscal, que prejudica o município pólo, que depende de seus recursos, em detrimento do município periférico, que vive de transferências intergovernamentais.

Isso também explica porque em Curitiba há uma pressão constante por melhores serviços, que os prefeitos têm buscado atender. Estes serviços aparecem como benefícios na forma de calçamento, pavimentação, sinalização, parques públicos, postos de saúde, clínicas especializadas, creches e escolas, além de bibliotecas, ciclovias, etc. Para isso, Curitiba precisou desenvolver uma estrutura de planejamento e arrecadação, vinculadas à fiscalização. Colombo possui grande parte de sua mancha urbana tomada por ocupação irregulares, e a implantação de asfalto nas ruas é um forma de garantir votos. A população busca serviços de saúde e educação em Curitiba, e os recebem se ter que pagar por isso.

Esses loteamentos irregulares são também uma forma de garantir para políticos e incorporadores vantagens financeiras ilícitas, pois os loteamentos irregulares favorecem aquilo que se chama de especulação imobiliária (termo que particularmente não gosto de usar por possuir uma conotação anti-capitalista, quando o problema, ao meu ver, é falta de capitalismo), que é uma forma de transferir recursos públicos para agentes privados. Mas como os recursos públicos transferidos não saem da população local, mas da de outros municípios, isso não gera indignação, protestos, etc.

Por tudo isso que foi dito, espero ter deixado uma pista para a explicação do surgimento das favelas, ocupações irregulares, enfim, áreas sem lei, onde não o Estado não atua, tampouco tem interesse em atuar. E reforça a idéia da importância dos tributos para gerar representação. Pode até parecer paradoxal um liberal defendendo a cobrança e ampliação da base tributária sobre a população, mas é que essa é a única forma que vejo de garantir que as pessoas se preocupem com os recursos do Estado, e cobrem do governo um uso responsável dos recursos, e, consequentemente, um carga tributária menor.


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