VÍCIOS DOS GEÓGRAFOS E UMA SAÍDA PARA A GEOGRAFIA
Por Fernando R. F. de Lima.
A geografia, enquanto disciplina acadêmica, sempre foi uma
área de conflitos epistemológicos. Não apenas no século XXI, mas desde sua
origem, a geografia sempre esteve no limiar entre ciência e charlatanismo.
Assim a discussão primeva era se esta seria uma ciência de síntese,
enciclopedista, ou uma ciência analítica, positiva, capaz de fazer o que as
tradicionais ciências duras faziam.
Os casos em que a geografia mais se distanciou das outras
ciências dizem respeito às análises especiais das relações econômicas e
sociais. Enquanto a economia, por exemplo, seguiu uma tentativa de modelar e
explicar as relações econômicas espaciais[1],
tentativa seguida por alguns geógrafos, a grande maioria acabou se perdendo em
descrições inócuas de atividades econômicas e ou suposta crítica ao modelo
econômico vigente.
Assim, a imensa maioria dos geógrafos continuou fazendo
inventários enciclopédicos sobre as características econômicas das “regiões” e
países, posteriormente substituídos pela “denúncia" das relações de
exploração entre as classes sociais e as até mesmo entre as regiões. Neste
ponto é que entram os vícios mais comuns entre os geógrafos. Acostumados a
fazer compilações de informações, é muito raro ver um artigo “científico” que
proponha uma tese e depois a submeta a testes para verificar sua veracidade.
A imensa maioria dos geógrafos, sobretudo na área de humanas,
parte sempre do uso de chavões consagrados pelos “grandes mestres” ou pelos
“grandes nomes” para revelar, desmascarar, desmistificar ou apresentar alguma
face horrenda do capitalismo, como a desconcentração da indústria automotiva,
ou a formação de arranjos urbano regionais, que funcionam “como novos espaços
de exclusão e acumulação por parte do grande capital”. Tudo bobagem,
obviamente. Espaços não funcionam, não agem, não induzem. Do mesmo modo que o
marxismo transformou capitalistas individuais, com todas as suas peculiaridades
e divergências em algo homogêneo, chamado Capital, praticamente uma entidade
sobrenatural, e agrupou sobre o termo Trabalho todos os trabalhadores do mundo,
sem se atentar para as muitas diferenças entre eles, os geógrafos críticos
criaram entidades místicas disfarçadas sob o nome de Espaço, Região, Metrópoles
entre outros. Estes espantalhos epistemológicos acabaram virando o principal
“instrumento analítico” dos geógrafos nos dias de hoje.
Digo isso, mas apesar do nome analítico, pouca análise é
feita. A geografia atual peca pelo excesso de “leitura bibliográfica” e pela
falta de verdadeira análise (decomposição, separação) de dados, sobretudo
aqueles com conteúdo espacial. Fosse assim, ninguém jamais diria que a
indústria automotiva se instalou em áreas “Green Field” stricto senso, uma vez que todos os municípios que receberam
indústria automotiva já tinham empresas em segmentos afins, sem praticamente
nenhuma exceção.
Esta informação pode ser obtida na base de dados da RAIS
(Relação Anual de Informações Sociais), banco de dados do qual a imensa maioria
dos professores e estudantes de geografia jamais ouviram falar, mas que contém
dados detalhados do mundo do trabalho formal, sobretudo no período que vai de
1990 a 2012. Lá é possível saber da existência de estabelecimentos e empregados
por setor, desagregando os dados pelo CNAE ou pelo CBO, outras siglas
desconhecidas por multidões.
Aí entra um segundo erro dos geógrafos em geral, que é o
hábito de escrever como se informasse uma plateia menos preparada e inteligente
e não como se escrevesse para pares acadêmicos. A forma simplificada como são
apresentadas as coisas, sem nunca apresentar os cálculos é um cacoete de
professor que escreve livro didático. A verdade está lá no mundo não para ser
discutida, mas para ser apresentada para os pupilos e os outros que querem
ouvi-la. Assim, nunca é necessário fazer um apanhado do que já foi dito contra
aquilo que você está afirmando, mas apenas juntar provas a favor dos seus argumentos.
Se escrevo sobre o aumento da pobreza nas grandes cidades,
faço uma pesquisa com autores que mostram que o capitalismo gera pobreza e
desigualdade. Se necessário, faço como Milton Santos, que utilizava as
estatísticas para enfeitar o texto, nunca como fonte de informação. Afinal de
contas, séries de dados, principalmente os temporais, dificilmente concordam
com afirmações do tipo “a desigualdade só aumenta sob o capitalismo”, a
“concentração regional da riqueza cresce no Brasil”, a indústria “se
desconcentra de forma concentrada” e outras tantas pérolas repetidas como
mantra sob o nome de ciência.
Nossos companheiros geógrafos são ainda avessos a qualquer
tipo de discussão. Em eventos, procuram sempre congregar amigos, nunca
convidando para a mesma mesa opiniões divergentes. Obviamente, este tipo de
comportamento ocorre diante de plateias amestradas, que nem mesmo conseguem
reconhecer divergências. Além disso, é muito indelicado discordar de alguém,
sobretudo uma autoridade. Somente arrivistas fazem isso. Por isso, no mundo
acadêmico e dos livros didáticos, a geografia é tão homogênea. A discordância
ocorre no máximo na escolha dos objetos de estudo, nunca a respeito do
resultado das conclusões.
Eu, algumas vezes, já tentei fazer textos que retratassem de
modo explícito os erros presentes em trabalhos de colegas geógrafos. Isso me
valeu a ira de algumas pessoas “muito importantes” na geografia do Paraná.
Pessoas “muito respeitadas” acham que o jeito como eu faço as coisas está
equivocado, e até mesmo que meu trabalho acadêmico carece, muitas vezes, de
maior consistência científica, mesmo sem analisá-lo, lê-lo ou compreendê-lo.
Para não parecer um arrivista, não citei nem citarei nomes neste artigo, com
exceção do Mito da geografia, o Milton Santos, em uma de suas frases muito
conhecidas, porque não quero me dirigir diretamente a ninguém, mas a todos ao
mesmo tempo. Peço também, antecipadamente, desculpas a meus queridos amigos
geógrafos que se esforçam para fugir deste mundo de mediocridade, desta guilda
encastelada nas Universidades.
Mas uma árvore é conhecida por seus frutos. Vejamos,
portanto, qual a contribuição dos geógrafos formados nos últimos 20 anos para a
sociedade. A imensa maioria está atuando como professor de ensino fundamental e
médio, repetindo chavões e doutrinando crianças com livros didáticos escritos
por aqueles formados 30 anos antes. Estes estão confortavelmente instalados em
cátedras acadêmicas, gozando dos privilégios que os professores universitários
possuem neste país, sobretudo se comparados aos outros níveis de ensino. Dão
poucas aulas e como resultado de suas pesquisas produzem mais ideologia.
Dos que fizeram doutorado, uma fração ridiculamente pequena
atua na iniciativa privada e nos governos como geógrafos, simplesmente por seus
doutorados não tem qualquer utilidade nas áreas profissionais. Por fim, restam
aqueles que tomaram a porta de saída e se especializaram em alguma área “dura”,
indo para a cartografia digital e as áreas ligadas ao meio ambiente e
engenharias. Profissionalmente, a maioria absoluta dos formados em geografia
atua em atividades que só dizem respeito à própria geografia, ou seja, atuam
apenas em causa própria.
São a personalização do egoísmo e do corporativismo, porque
praticamente nada do que fazem tem qualquer aplicabilidade técnica nem conteúdo
ou valor científico. Cada vez mais, até mesmo para atividades de descrição dos
territórios os geógrafos vêm perdendo espaço. No fundo, a geografia está,
enquanto ciência, morrendo (se é que algum dia viveu). Esta morte ocorre
justamente no momento em as possibilidades de estudo com informações espaciais
está crescendo exponencialmente.
Alguém pode me perguntar: o que fazer diante disto? Uma
reviravolta no ensino superior de geografia é urgente, mais que necessária. Os
cursos de bacharelado deveriam se ocupar do ensino de técnicas e tecnologias
voltadas aos estudos especiais. Para tanto, seria necessário inserir uma carga
considerável de matemática e estatística no currículo, assim como redimensionar
todo o ensino da cartografia digital, principalmente quando casada com as
ferramentas estatísticas. Computação deveria ser ensinada.
A história da ciência deve fazer parte do currículo, mas como
um aprendizado para não repetir os erros atuais e passados, que custaram a
todos os profissionais geógrafos uma posição que sequer é de coadjuvante no
processo de produção de conhecimento. Há ainda a questão do ensino de
geografia. Sem um delineamento claro de seus objetivos, que deveriam estar
focados no ensino dos fundamentos da orientação especial e leitura,
interpretação e uso de dados espaciais, o ensino de geografia deveria ser
simplesmente riscado da grade de ensino fundamental e médio, abrindo espaço
para outras disciplinas mais relevantes que a doutrinação de alunos.
[1] Alguns
propuseram o termo ciência regional, e este ramo, ao contrário do que muitos
imaginam, continua muito ativo, sobretudo no desenvolvimento de métodos relacionados
à estatística espacial.
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a.h