TRANSPORTE COLETIVO É COISA SÉRIA – POR ISSO O ESTADO DEVERIA ESTAR FORA DISSO. – Parte 1
Por Fernando Raphael Ferro
Em nosso país, e em boa parte do mundo, as
pessoas entendem que quando um assunto é importante o Estado deve regulá-lo.
Esse é o entendimento geral para quase tudo: armas, drogas/remédios, educação,
saúde, e o nosso tema, transporte coletivo. A questão toda é que é de
conhecimento geral que a maioria das ações regulatórias do Estado passa pela
criação de normas do que pode e não se pode fazer. Dentro dessas regras, as
pessoas escolhem o modo como fazer, arriscam seu próprio capital e trabalho,
sendo que algumas ganham dinheiro e outras perdem.
Em todas as áreas da economia, de tempos em
tempos aparecem novos competidores, que desafiam os grandes do ramo, as vezes
os colocando em grandes apuros e até mesmo os retirando do negócio. A coisa
toda aconteceu tantas vezes que abundam exemplos na literatura. O caso clássico
é o da Kodak, fabricante americana de filmes fotográficos que foi praticamente
varrida para fora do mercado que criou com a invenção das câmeras digitais.
Mas não precisamos parar por aí: há também o
caso da IBM, que abandonou a fabricação de computadores pessoais, vendendo sua
divisão para a chinesa Lenovo; a Texas Instrument cujos relógios digitais foram
completamente varridos pela japonesa Cassio; no ramo de automóveis, a GM, Ford
e Chrysler viram seu mercado encolher com a chegada de japoneses, alemães e
coreanos, que dominaram todos os nichos, de carros populares aos de altíssimo
luxo. A lista segue.
Poucos segmentos do mercado, no entanto, se
mantém tão estáveis quanto aqueles que são fortemente influenciados pelas
decisões estatais. E nisso entra a questão dos monopólios. O transporte
coletivo, fornecimento de água encanada e distribuição de eletricidade são tradicionalmente
os setores em que apenas uma ou poucas companhias dominam o mercado ao longo de
muitos anos. Podemos ainda apontar o transporte ferroviário de cargas, e alguns
outros setores específicos no qual a presença estatal vai além da
regulamentação e passa pela presunção de exploração do serviço.
Para entender melhor o que quero dizer com
presunção de exploração do serviço, vou ter que explicar para os leitores a
diferença entre dois conceitos diferentes: serviço público e serviço ordinário.
Neste caso, vou me ater também ao problema brasileiro, já que este é o mal que
tentamos combater imediatamente. Mas tenho ciência que este é um mal que aflige
outros países, já a ideia básica e o conceito jurídico por detrás dela é a
mesma na maioria dos países ocidentais, assim como seu resultado prático.
Nossa constituição entende como Serviço Público
como todo aquele prestado pela Administração Pública Direta ou Indireta e por
seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades
essenciais ou secundários da coletividade ou simples conveniência do Estado,
obedecendo os princípios da Permanência, Generalidade, Eficiência, Modicidade e
Cortesia.
“As
funções desempenhadas pela Administração Direta e pelo conjunto de seus órgãos
públicos estão diretamente relacionadas à prestação de serviço público e ao
exercício do poder de polícia (polícia administrativa, polícia judiciária e
polícia ostensiva)”.
De acordo com lei brasileira 11.079/2004 a
única atividade indelegável à iniciativa privada é exercer o poder de polícia,
devendo-se destacar que existem três formas de poder de polícia: polícia
administrativa; polícia judiciária e polícia ostensiva. A primeira diz respeito
a fiscalização do cumprimento de normas, regras, e leis; a segunda é a polícia
que serve de suporte ao poder judiciário no sentido de coletar provas e
evidências para instruir processos judiciais; a terceira é o policiamento
ostensivo que a população chama genericamente de polícia. No Brasil,
usualmente, a polícia administrativa se exerce através dos fiscais e auditores
fiscais; a polícia judiciária é representada pelas polícias civis e pela
Polícia Federal, enquanto o policiamento ostensivo é realizado pelas Polícias
Militares e também pela Polícia Rodoviária Federal.
Entender porque o papel do Estado está mal
colocado quando se dispõem a tratar do transporte coletivo, necessidade
compreender, primeiramente que o transporte coletivo não é uma necessidade
essencial ou secundária da coletividade, tampouco configura uma atividade voltada
para a conveniência do Estado (como os Diários Oficiais), configurando quando
muito a constituição de um monopólio voltado às conveniências de alguns poucos
funcionários estatais e dos concessionários e permissionários que operam as
estruturas de transporte coletivo.
Isso porque o deslocamento dentro do território
nacional constitui um direito básico de todo o cidadão; o direito de ir e vir.
Ninguém pode ser impedido de transitar livremente em território nacional. No
entanto, dispor de serviços de transporte motorizado para tal deslocamento,
seja transporte individual ou coletivo, atende apenas a uma conveniência.
Primeiramente porque é impossível garantir a
Generalidade no oferecimento de um serviço de transporte coletivo; será sempre
possível oferecer diferentes veículos para diferentes bolsos; segundo, em
termos de eficiência, é provado que a alternativa escolhida em praticamente
todos os casos é sobrepujada por outras no critério eficiência, ainda mais
quando se considera eficiência em suas várias esferas (econômica, ambiental,
energética, etc.); terceiro, que o princípio da cortesia é facilmente
sobrepujado nos sistemas urbanos de transporte coletivo que vemos diariamente
nas grandes cidades, onde os cidadãos são tratados como sardinhas humanas. Quarto,
porque a permanência do serviço é apenas a oferta de regularidade e
previsibilidade de horários, o que em decorrência do trânsito caótico das
grandes cidades acaba por se tornar apenas uma referência; em quinto e último
lugar porque a modicidade da tarifa estará diretamente relacionada a qualidade
do serviço oferecido e além disso, a alternativa coletiva oferecida pelo estado
raramente se configura na opção mais módica.
De modo geral, dada a liberdade de ir e vir de
que cada um dos cidadãos dispõe, a escolha entre transporte coletivo ou
individual, motorizado ou não motorizado, ou ainda o pedestrianismo é uma
escolha individual. Desta forma, os critérios de eficiência, modicidade,
permanência, cortesia e generalidade são apenas referências abstratas na hora
de configurar um edital para licitação pública, que é a forma da lei permitida
para a concessão ou permissão de serviços de transporte coletivo. Não faria
melhor, portanto, o Estado se ao invés de concessionar serviços de transporte
coletivo apenas regulasse as regras de trânsito, segurança e qualidade mínimas
sob as quais esse deveria operar?
Para tanto, vou fazer uma comparação com o
serviço de alimentação, certamente uma necessidade básica de todos os seres
humanos. O Estado, de forma alguma se arroga o direito de realizar uma
licitação para entregar a operação de todos os restaurantes a um único agente
(ou a dividir a cidade em grandes lotes com exclusividade) para o fornecimento
do serviço de refeições fora de casa obedecendo aos princípios de modicidade,
eficiência, permanência, cortesia e generalidade.
Ao invés disso, apenas descreve quais as regras
básicas às quais qualquer empreendedor deve seguir caso queira abrir um
restaurante. Quais os requisitos e tamanhos mínimos, equipamentos de prevenção e
combate a incêndios, regras de cortesia que deverão ser respeitadas e direitos
e deveres mínimos assegurados aos usuários. Como resultado, qualquer grande
cidade oferece o serviço de refeições fora de casa com preços que variam do
atendimento ao mais pobre até o mais rico cidadão. Restaurantes cujo menu ultrapassa a centena de reais por
cada a prato até pequenas cantinas que fornecem refeições completas por menos
de R$ 10,00, com direito a refresco. Toda essa diversidade garante o
atendimento aos mais diversos públicos, em toda a cidade, a preços variados sem
que seja necessária a presença de um único restaurante estatal, apesar de
existência de vários deles dentro de alguns campi
universitários.
No caso do transporte coletivo, o que impera é
a desorganização que beira o caos, apesar dos esforços contínuos do poder
público, das regulamentações existentes, fiscalizações e principalmente, das
concessões decenárias. Todo fim de tarde vemos ônibus lotados, usuários
cansados, reclamando do preço abusivo da tarifa, com opções de linhas que levam
um simples deslocamento do trabalho até em casa a depender de ao menos uma
baldeação e, pior de tudo, a bilhões de horas de trabalho perdidas todos os
anos dentro de coletivos lotados em condições subumanas.
E por essa mesma razão notamos, apesar do
crescimento populacional das grandes cidades, uma redução anual no número de
passageiros transportados pelas redes públicas de transporte. Esses
passageiros, obviamente, não estão optando por ficar em casa. Esse não é o resultado
de uma queda de mobilidade pessoal. Ao contrário, essas pessoas estão trocando
o martírio diário do transporte público pelo transporte privado nas suas mais
variadas formas.
Milhões de pessoas adquiriram um automóvel
próprio e passaram a realizar seus deslocamentos de forma individual,
engrossando o coro dos descontentes com os congestionamentos e as obras
insuficientes de infraestrutura; outro tanto adquiriu uma moto de baixa
cilindrada, optando pelo mais barato, eficiente, mas também perigoso meio de transporte
individual. Jovens de classe alta adotaram um hábito que era comum apenas entre
trabalhadores de baixa renda, o ciclismo, e tornaram a bicicleta um meio cada
vez mais presente nas cidades. Empresas adotam em quantidade cada vez maior o
fretamento de ônibus para transportar seus funcionários. Por fim, os
aplicativos de carona gratuita e de carona paga popularizaram de vez o
transporte com chofer, a preços muito mais módicos que o altamente regulado,
explorado sob licença e dependente de subsídios serviço municipal de táxi. Desta
forma, as cidades têm vivido uma revolução de mobilidade, à revelia dos
esforços estatais para manter vivas as concessões monopolistas e/ou oligopolistas
de ônibus e táxis.
Obviamente
os esforços passam pela própria pressão para redução do poder de mobilidade dos
cidadãos; desta forma, corporações de taxistas pressionam as Câmaras Municipais
por regulamentações draconianas contra aplicativos de carona paga, tais como
Uber e Cabify; empresas de transporte coletivo fazem lobby junto a planejadores
para a implantação de faixas exclusivas de ônibus na tentativa de aumentar a
velocidade de seus veículos frente aos automóveis. E estas mesmas empresas
clamam por reajustes tarifários, assim como seus funcionários e seus poderosos
sindicatos clamam por aumentos salariais e novos benefícios que acabam
empurrando a tarifa em direção a estratosfera e afastando ainda mais usuários.
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