CONSERVADORISMO BRASILEIRO – REACIONÁRIOS, NÃO LIBERAIS
Toda vez
que se toca no assunto previdência de militares, a reação é a mesma: alguns
cidadãos, advindos das mais diversas classes sociais, aparecem com um discurso
indignado de que os militares devem ser preservados de qualquer reforma porque
arriscam sua vida pela país. Militares, segundo dizem, colocam sua vida em
perigo para proteger civis. Dedicam sua vida a pátria. Por isso merecem
privilégios.
A caserna
em sua defesa anti-reforma afirma que os militares trabalham carga horário
muito superior às 40 horas semanais dos demais funcionários públicos; ademais,
ao contrário dos trabalhadores da iniciativa privada, não dispõem tampouco de
horas extras. Além disso, alegam ainda colocar em risco a própria vida para
defender a de outrem e à pátria. Alguns alegam ainda que militares viveriam
menos e até envelheceriam mais rapidamente que civis.
Assim, os “privilégios” (deixarei entre aspas por enquanto), seriam apenas uma forma de
compensar as desvantagens de vida tão dura. Quais seriam estes afinal?
Primeiramente, a aposentadoria ou reforma precoce. Grande maioria dos militares
deixa a atividade laboral antes dos 55 anos de idade. Conta simples: ao iniciar
o ofício aos 18 anos numa escola preparatória, aos 48 anos de idade terá
chegado a 30 anos de contribuição. Assim, estaria o militar dispensado da
prática laboral diária e prestaria-se a reforma. Oras, com uma expectativa de
vida beirando a mais 34 anos de vida, contribuiria menos tempo que aquele que
receberia o benefício integral lastreado pelo último salário.
Fora
isso, destaque-se ainda que na caserna a contribuição é de simbólicos 7,5%
sobre o soldo, contra 11% dos servidores civis. Chega-se aos 9% caso queira
incluir a filha não casada entre os beneficiários da pensão após o próprio falecimento.
Isso estende seu benefício previdenciário para além da expectativa de vida do
próprio contribuinte, adicionando ainda vida da viúva e da filha.
O caso pode parecer realmente uma
compensação razoável para aquele soldado veterano que lutou nos horrores de uma
guerra, defendeu os interesses nacionais e depois de vários anos de serviços
prestados à nação, longe de casa, apreciou um merecido descanso. Mas será essa
a realidade dos militares brasileiros? E acima de tudo, será essa a realidade
de todos os militares que atuam nas forças armadas? Aqui temos que segmentar. O
exército, marinha e aeronáutica possuem diversas funções. Nem todas apresentam
os mesmos riscos e perigos. Tem-se desde professores e médicos até cozinheiros
e músicos que atuam dentro da caserna. Muitos deles jamais chegarão perto de um
campo de batalha. Nem mesmo em treinamento. Tampouco há necessidade disso. No
entanto, sob o ponto de vista previdenciário, todos recebem exatamente o mesmo
tratamento.
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Plínio Salgado |
Não seria assim mais justo premiar
ou beneficiar militares que exerçam de fato ao longo da vida uma função
perigosa, durante o período exercido, de forma diferenciada em relação aos
demais, do que beneficiar homogeneamente toda uma classe sem qualquer
distinção? A mim parece que igualar a todos pelo mesmo princípio não passa,
obviamente, de uma pressão corporativista, advinda da mesma lógica anti-mérito
que reina em outras áreas do serviço público como o magistério e a medicina.
Mas por que seres aparentemente
racionais, de classe média e média alta, com curso superior, defendem a
manutenção de privilégios absurdos para segmentos específicos da sociedade? A
explicação talvez esteja numa raiz mais profunda, que vou tentar esboçar aqui.
Nossos conservadores, anti-comunistas, nossa direita, por assim dizer, é acima
de tudo, reacionária. Partilham entre si alguns códigos como o tradicionalismo,
culto à família, a nobreza, o municipalismo e o regionalismo, oposição à
democracia, crença na superioridade do rural sobre o urbano e o armamentismo.
Esses traços são comuns aos diversos movimentos latinos de reação ao
liberalismo anglo-saxão, à democracia liberal, mas também ao
comunismo/socialismo. Formam a base doutrinária do Integralismo, cuja origem
pode ser reputada à Charles Maurras, fundador da “L’action française”:
“Maurras
declara ser a França o produto acabado da religião católica. Ambas seriam as responsáveis
por salvaguardar a integridade da sociedade Ocidental, firmada sob a égide cristã
e greco-romana[1]”
CAZETA[2]
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Gustavo Barroso |
No caso brasileiro, o integralismo
teve suas origens com Plínio Salgado, guardando semelhanças com L’action
française, mas incorporando alguns elementos nacionais. Expoentes intelectuais
como Miguel Reale fizeram parte do movimento, que apoiou inclusive o Golpe de
Getúlio Vargas e forneceu elementos ideológicos para a formatação do Estado
Novo no país. Políticos importantes, como Juscelino Kubitschek foram
influenciados por ideias e polícias de matriz integralistas, além de nomes importantes do cenário nacional como Jorge Lacerda e Dom Helder Câmara também terem composto o movimento.
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Enéas Carneiro |
Foi o
integralismo a base da fundação da ARENA e o PRONA, partido do falecino Enéas
Carneiro, era um partido de inspiração integralista, sendo o discurso de Enéas
muito próximo às ideologias integralistas. Atualmente, temos um fac-símili de baixa qualidade que atende
pelo nome de Jair Bolsonaro, que reflete os mesmo ideais integralistas que
conformam o conservadorismo brasileiro. Citando o integralismo francês, temos:
“A oposição à democracia; a
preponderância do catolicismo em detrimento da maçonaria, do protestantismo e
do judaísmo; a crença em que a propriedade rural forneceria proteção contra a
contaminação moral da sociedade burguesa e, por último; o armamentismo.” (CAZETA
op. Cit)
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Jair Bolsonaro |
É fácil
reconhecer a desconfiança em relação aos processos democráticos, o flerte com
as diversas religiões cristãs, sobretudo as mais tradicionalistas, um apelo
forte ao “agronegócio” e a defesa do porte irrestrito de armas pela população
como a coluna vertebral do discurso dos conservadores nacionais nos dias de
hoje.
E na
mesma desconfiança em relação à democracia, Maurras colocava ainda, nas
palavras de CAZETA que:
A liberal-democracia, por outro lado, colocaria no
poder elementos políticos selecionados pelo voto individual e popular. Deste
modo, eram consideráveis as chances de ascenderem representantes inaptos às
funções imputadas pelo cargo a ser ocupado, segundo Maurras, em função das
formas de escolha. Nesta perspectiva, calcadas nas camadas populares abrangidas
pelo sufrágio a democracia causava inquietação por ser suscetíveis aos assédios
financeiros, em virtude das suas bases de sustentação – o voto popular – serem
despreparadas e de baixa inclinação aos assuntos políticos.
Novamente
é fácil espelhar o discurso dos integralistas do início do século XX na direita
que ressurge no Brasil de hoje. O elemento faltante apenas é a defesa de uma
democracia ou monarquia orgânica, que vem ganhando cada vez mais adeptos com a
expansão das redes sociais. Ou seja, aquilo que aparece como a nova direita
no Brasil nada mais é que a repetição da velha Ação Integralista Brasileira, um
movimento que a esquerda não teria tanta falta de razão em chamar de fascista
em alguns pontos.
De
qualquer modo, ainda que não fascista, não seria de forma alguma liberal,
tampouco colocaria em primeiro plano a libertação do indivíduo ou povo, porque
a própria formação da “elite” brasileira (quiçá das elites latinas em geral),
rejeita visceralmente os indivíduos e o liberalismo, e tem um desapreço muito
grande pelo “povo”, pela impessoalidade e pela “rule of law” que caracterizam as instituições anglo-saxãs,
demasiado alienígenas para nosso padrão de vida.
O Brasil
precisa de reformas, e isto já é um consenso geral, mas estas reformas não
podem, na visão da grande maioria dos brasileiros, seja à esquerda ou à direita
do espectro político, afetar os “direitos adquiridos”. Não podem afetar
militares, funcionários públicos, cartorários, pensionistas do INSS, beneficiários
do bolsa família, usuários do SUS, clientes de planos de saúde, tomadores de
empréstimo do BNDES, afiliados das associações comerciais e industriais,
tampouco membros de sindicatos laborais ou patronais. Obviamente, as reformas
não podem afetar tampouco juízes, procuradores, legisladores, professores e
ainda menos frentistas, ascensoristas, recepcionistas e secretárias. As
reformas devem ser realizadas imediatamente, para o bem de todos, mas sem
alterar, em hipótese alguma, quaisquer aspectos do status quo.
[1] “A França é católica e deve,
portanto, se livrar dos protestantes, dos maçons e dos judeus; a França é agrícola,
ela tem a necessidade de uma política protecionista e de um movimento de
retorno à terra; a França é militar portanto, a glória de suas forças armadas
são condição de seu orgulho; ela é republicana, não democrata.” VRBATA, Ales
Tenório Luna. MAURRAS, Charles. Quand les Française ne s’aimaient pas:
chronique d’une Renaissance – 1895 – 1905. p. 25.
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