ONG, HAITI E PODER PÚBLICO
Até imagino o que muitos vão pensar de mim quando lerem este texto. Mas não posso deixar de comentar algo que fica martelando em minha cabeça. Um podcast da BBC mostra que as ONG`s que estão atuando no Haiti não estão trabalhando de modo descente, e que os recursos que deveriam ser utilizados para ajudar aquela população que de tudo carece acaba servindo para enriquecer alguns poucos. O pior, contudo, não é o fato de alguns estarem ganhando dinheiro com o negócio das ONG`s, já que isto é parte do negócio; a questão é que as ONG`s não tem funcionado.
Como o próprio nome diz, uma Organização Não Governamental é uma organização que, a princípio, não tem filiação com o governo. Ou seja, é parte da iniciativa privada. Qualquer um pode montar uma ONG para fazer o que quiser. A rigor, a diferença entre uma ONG e uma empresa está apenas no fato de que a primeira vive de doações e não visa o lucro institucional enquanto a segunda vive da venda de produtos e serviços e visa o lucro da instituição. Por traz de ambas pode haver ou não uma "lógica" de busca pelo crescimento a curto, médio e longo prazo.
Quando dizemos que as ONG`s no Haiti falham em seu papel primário de "fazer o bem", ou de "ajudar" na reconstrução do país, mostramos, na verdade, que a iniciativa privada falhou neste objetivo. Automaticamente, alguns cobram mais transparência por parte das ONG`s, o que pode ser obtido através, por exemplo, de regulamentação estatal. Podemos dizer também que a iniciativa privada falhou no Haiti por meio das empresas. Isto porque as empresas precisam de alguns pré-requisitos para poder existir. Um deles é a existência de um mercado consumidor e outra e a existência de um mercado de trabalho. Ao que parece, no Haiti nenhum dos dois tipos de mercado consegue se estruturar. Novamente, falha da iniciativa privada.
O que está por trás disso, que muitos economistas da linha institucionalistas apontam, é que o capitalismo precisa de instituições para se desenvolver. Como eu disse no texto anterior, as pessoas precisam aprender a reagir ao incentivo monetário para que os mercados funcionem. Há de se processar uma mudança na sociedade que permita que os indivíduos reconheçam o dinheiro como meio para satisfazer suas necessidades de poder, sexo, conforto e alimento.
O Haiti tem uma economia de subsistência, que há muitas décadas passa longe do capitalismo. Por mais que em algumas áreas litorâneas várias pessoas trabalhem por dinheiro, seja produzindo roupas, ou drogas, se prostituindo ou vendendo alguns produtos, os mecanismos de ascensão social não passam pela obtenção de um emprego, uma casa, um cachorro, uma esposa e dois filhos saudáveis que freqüentam a escola e tiram boas notas em matemática. Ascensão social é viver sem trabalhar, com várias pessoas te servindo como se você fosse uma espécie de sultão, e o poder é ter muitos que temem sua autoridade e por isso fazem por você coisas que você mesmo deveria fazer.
É mais ou menos o mesmo que ocorre numa favela carioca dominada pelo tráfico. Ascender socialmente é ser amigo do traficante, do chefão, e quando te deixam parado numa fila, você apela a esta amizade para conseguir favores. Muitas meninas ascendem socialmente desta forma, ficando grávidas de bandidos perigosos. E muitos garotos sonham ser o dono da boca, ou o chefe do tráfico, porque sabem que este é o meio de conseguir poder. Um garoto de classe média entende o poder de forma diferente. Ter poder é ter dinheiro para poder pagar um bom restaurante, e não ser atendido lá porque o dono morre de medo de você.
A iniciativa privada, ou seja, os indivíduos perseguindo seus próprios interesses, seguindo convenções sociais amplamente aceitas, só funciona num ambiente onde o prestígio social advém do próprio esforço em conseguir dinheiro segundo regras valias para todos. Se para conseguir este prestígio não importa o meio em que você adquiriu seu dinheiro, a iniciativa privada deixa de funcionar. Para chegar neste equilíbrio são necessárias as instituições sociais, entre as quais figura o Estado e também as Igrejas. Antes das ONG`s funcionarem no Haiti, é preciso que aquele povo seja "civilizado" à nossa maneira.
É preciso fazer brotar no coração dos haitianos a vontade de progredir pelo trabalho, pelo salário. A vontade de adquirir uma casa, por mais simples que seja, com reboco nas paredes, jardim antes da porta de entrada e um carrinho limpinho na garagem ou uma bicicleta novinha em folha. Estas coisas devem virar símbolos de status. Sem isso, o Haiti nunca irá sair da situação e subsistência em que se encontra. Alguém terá que fazer este papel civilizador, contar estas "mentiras" do capitalismo, brotar a inquietação no coração das pessoas por buscar sempre mais do que é necessário. Então as ONG`s vão funcionar. Talvez neste ambiente, o Estado passe a funcionar, e as empresas possam funcionar também. Não existe capitalismo sem instituições, sem aprendizado social.
Não gostaria que este texto ficasse muito profundo, ou muito teórico, mas jogo a bolo no colo de Weber. O que permitiu que os camponeses alemães virassem foi a ética protestante do trabalho. Para mostrar que eles eram escolhidos, eles tinham que trabalhar mesmo quando não precisavam mais de dinheiro ou bens materiais, levando ao processo de acumulação. Uma ética deste tipo é que falta aos haitianos hoje. As novelas brasileiras são capazes de incentivar as pessoas a buscar este algo mais, assim como os atuais missionários de algumas igrejas protestantes que pregam a tal teologia da prosperidade. Talvez sejam necessários mais missionários religiosos com gravatinha no Haiti (por mais odiosos que possam parecer muitos destes cultos pentecostais) do que ongueiros cabeludos querendo dar assistência aos necessitados.
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