PONTO DE VISTA SOBRE A PROIBIÇÃO DO CIGARRO
Recentemente o governo do Estado de São Paulo aprovou uma lei que proíbe o uso de tabaco (cigarros, charutos e cachimbos) em bares e restaurantes. A lei foi muito mal vista, suscitando comentários em liberais/libertários que vêem na medida um avanço do Estado sobre os costumes, que deve ser barrado. Entre os argumentos que li e ouvi estiveram alguns como: "primeiro a bebida (referindo-se à lei seca) depois o cigarro e futuramente os obesos". As pessoas estão vendo estas medidas como um avanço do Estado sobre a liberdade das pessoas de beberem, fumarem e futuramente comerem.
Obviamente, este tipo de lei é um restrição imposta aos restaurantes, já que limitam o uso de seus ambientes para o consumo de tabaco, que ainda é uma substância com venda legalizada. Contudo, esta lei anti-tabaco não pode ser interpretada da mesma forma que uma lei que proibisse a venda e a circulação do cigarro no país. A razão é a seguinte: ela é uma lei que altera as regras de funcionamento dos restaurantes e não uma lei que altera o direito individual de consumir tabaco. A diferença é sutil, mas muda completamente a forma como as coisas são vistas e interpretadas.
Do mesmo modo que uma cozinha de restaurante tem que seguir determinadas regras de limpeza e vigilância sanitária, e seus ambientes internos tem que obedecer determinadas regras de segurança e lotação máxima, agora devem proibir o uso do tabaco, que já há algum tempo era restrito. Do mesmo que um hospital deve proibir o cigarro em suas dependências, agora os restaurantes também o devem. A natureza da lei é a mesma, regulando estabelecimentos e não indivíduos. Por enquanto o uso do tabaco continua permitido, e penso que continuará assim durante muitos anos ainda. A medida não é necessariamente um ataque ao tabaco, mas uma forma de "limpar" um ambiente voltado para as refeições.
Esta questão também não pode ser vista como um ataque à propriedade privada. Porque dentro da casa de cada um, que é um ambiente, ou melhor, um espaço privado por excelência, o cigarro continua permitido. Restaurantes, por mais que sejam negócios e investimentos privados, são espaços públicos, isto é, que podem ser freqüentados por todas as pessoas sem quaisquer limitações ou discriminações. E esta particularidade é definida pela distribuição de alvarás. Ou seja, o um restaurante, para poder funcionar como tal, deve cumprir várias regras que garantam um padrão mínimo para o público e que estabeleça o que pode e o que não pode ser punido em caso de descumprimento. Em troca, o alvará garante ao estabelecimento o direito de cobrar pelo serviço oferecido.
Nunca vi alguém propor o fim dos alvarás. Eles servem para proteger os cidadãos, por exemplo, contra o botulismo. Também permitem que, caso seja lesado, um cidadão reclame seus direitos contra o estabelecimento na justiça. Se alguém comer uma maionese na casa do cunhado, por exemplo, e passar mal, nada poderá fazer contra ele. Se isto ocorrer num restaurante, poderá reclamar seus direitos. Isto é garantido porque quando se compra comida num restaurante, ou num mercado, há um conjunto de leis que regula o contrato estabelecido entre as pessoas (vendedor e comprador). É um contrato necessário: quanto mais complexa uma sociedade, mais contratos implícitos nas relações existirão.
A lei anti-fumo assegura que as pessoas que freqüentarem um restaurante terão respeitada seu direito a não inalar fumaça de tabaco, o que não ocorria antes, quando os espaços deveriam, mas nem sempre eram, vedados para fumantes ou não fumantes. Aos fumantes, ficam reservados estabelecimentos comerciais voltados especificamente para a prática do fumo, como tabacarias. Continua permitido também o uso de tabaco nas ruas e nas residências, ou seja, os espaços público e privados por excelência. São locais especialmente licenciados para o tabagismo. Portanto, apesar de restrito, ainda está garantido o direito a escolher fumar, apesar de todos os prejuízos à saúde conhecidamente atribuídos a esta prática.
LEI SECA E PEDÁGIOS
Quando da aprovação da lei seca houve muita gente que disse que aquilo era absurdo, porque limitava o uso da bebida alcoólica mesmo que em limites considerados seguros para a direção. Foram muitos os argumentos surgidos contra esta prática. A questão, novamente, é que ninguém foi proibido de beber. Ao pedestre, ou seja, o cidadão, ficou integralmente garantido o direito a embriagar-se, ou então a beber socialmente, ou como quiser, desde que respeitadas as demais leis. A proibição da ingestão de bebida alcoólica foi destinada ao "motorista", ou seja, uma pessoa licenciada para dirigir veículos motorizados.
Ser "motorista" é uma licença concedida às pessoas, uma espécie de alvará, assim como aquele fornecido ao restaurante. Quando somos motoristas, não somos cidadãos comuns. Estamos cumprindo uma função que exige o conhecimento de um determinado número de regras e leis que os outros cidadãos não-motoristas estão dispensados de saber. Entre estas regras foi adicionada a proibição de dirigir com álcool no sangue, ou seja, sob o efeito, por mínimo que fosse, de bebidas alcoólicas. Esta lei não limita o cidadão de ingerir bebidas, do mesmo modo que o pedágio não limita a liberdade de ir e vir. Aos veículos motorizados é obrigatório o pagamento de pedágio, licenciamento, IPVA, seguro obrigatório etc. As pessoas podem ir e vir livremente por todas as ruas, mesmo que pedagiadas, sem quaisquer ônus e mesmo que utilizando de veículos não motorizados, como bicicletas, por exemplo. Isto é, o pedágio não limita a liberdade de ir e vir, assim como a lei seca não limita a liberdade de embriagar-se e a lei anti-fumo não limita o direito de fumar. Estas liberdades passam apenas a ser reguladas. Tanto que a lei do tabaco não está voltada contra o fumante, mas contra os estabelecimentos, e a lei seca está voltada aos motoristas e não aos vendedores de bebida alcoólica.
Por isso a primeira analogia, entre o álcool o cigarro e a obesidade não é verdadeira. Porque a primeira lei, a lei seca, não foi contra os ébrios, e a segunda lei, a do fumo, não foi contra os fumantes. Em relação aos alimentos, já existe como obrigatoriedade a presença de cardápios em restaurantes e tabelas com informações nutricionais. Apesar disso, ainda acho que não estão suficientemente apresentadas informações sobre o potencial maléfico de determinados alimentos.
Finalizando este texto, destaco que é importante não confundir liberalismo com anarquia. Mesmo um sociedade liberal que garanta plenas liberdades aos cidadãos pode e deve ter regulamentações sobre as atividades econômicas e funções públicas. Todos os estabelecimentos devem seguir regras, ou seja contratos, para garantir os limites entre os direitos e deveres de cada um. Isto não é ingerência sobre negócios privados ou sobre a capacidade das pessoas decidirem. É apenas uma "simplificação", por mais que a primeira vista pareça o contrário, dos procedimentos jurídicos aplicáveis a determinadas situações. Mesmo sendo liberal eu continuo achando que os motoristas devem ter licenças para dirigir, com prazo de validade, licenças para pilotar aviões ou barcos, licenças para realizar procedimentos médicos, para operar restaurantes, para vender drogas (no caso as farmácias ou drogarias), para distribuir alimentos, etc.
Podemos discutir, obviamente, as cláusulas destes contratos (as leis) que regem estes estabelecimentos, para evitar que estas regras se transformem em reservas de mercados que violem a igualdade perante a lei. Podemos até mesmo discordar destas regras. Mas creio que é necessário separar as coisas e não confundir nossa indignação contra as leis que nos contrariam como uma limitação da nossa liberdade. Desejar que estas regras simplesmente não existam não é o caminho para a liberdade, mas sim para a desorganização das sociedades complexas que criamos ao longo dos séculos. Civilização, que é o que permite as liberdades e garante o direito a vida, é algo inseparável das leis e regras que estabelecem os limites entre os direitos e deveres, enfim, que garantem a existência de contratos sociais.
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